Uma audiência pública numa cidade grande costuma ser um evento interessante, ao mesmo tempo animador e desanimador. Conheço melhor as audiências da prefeitura de Nova York, em quintas-feiras alternadas, sobre medidas que exigem a decisão do principal órgão de governo do município, o Conselho de Orçamento. Os assuntos aparecem na pauta do dia da audiência por pressão, influência e manobra de alguém de dentro ou de fora do governo.
Esse é o capítulo 21
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Os cidadãos que quiserem se manifestar dirigem-se ao prefeito, aos cinco diretores das regiões administrativas, ao secretário de Finanças e ao presidente da Câmara Municipal, sentados atrás de uma bancada semicircular elevada numa das pontas de uma sala ampla e bonita, cheia de bancos brancos com encosto alto para o público. Os funcionários públicos, eleitos ou indicados, também se sentam nesses bancos, para atacar ou defender assuntos controversos. Às vezes, as sessões são tranquilas e rápidas, mas geralmente são tumultuadas e tomam não só o dia, como entram noite adentro. Segmentos inteiros da sociedade, problemas de bairros e mais bairros, distritos e mais distritos, desfiles de personalidades de vulto, tudo isso ganha vida na sala. Os membros do Conselho ouvem, aparteiam e às vezes baixam decretos na hora, como dirigentes presidindo o tribunal de um feudo na época medieval.
Fiquei viciada nas sessões do Conselho de Orçamento no papel de participante ferrenha e constante desse tipo de audiência, e não consigo deixar de me envolver quando se apresentam os problemas de um distrito ou se defende a causa de um bairro. Em certo sentido, é tudo muito exasperante. Vários dos problemas não deveriam nem existir. Bastaria que funcionários bem-intencionados das secretarias municipais ou de departamentos competentes conhecessem na intimidade as ruas ou os distritos – e se importassem com eles – tão afetados por seus planos, ou que soubessem um mínimo daquilo que os moradores desses lugares consideram importante em sua vida e por quê. Algumas das divergências nunca teriam ocorrido se os planejadores e outros pretensos especialistas entendessem infimamente o funcionamento da cidade e o levassem em consideração. Outras questões, é evidente, envolvem favoritismo, acordos e medidas administrativas arbitrárias que enfurecem os eleitores, mas não se consegue atribuir sua responsabilidade a ninguém nem desfazê-los. Há também muitos casos (não todos) em que são logradas centenas de pessoas que perderam o salário do dia, ou deixaram os filhos com alguém, ou trouxeram os filhos junto e ficam sentadas horas a fio com os pequenos irrequietos no colo; tudo já havia sido decidido antes que elas fossem ouvidas1.
Ainda mais desanimador que tudo isso é as pessoas logo perceberem que há problemas que fogem totalmente ao controle. Seus desdobramentos são muito complexos; tipos muito diferentes de problemas, carências e serviços se emaranham em determinado lugar – problemas demais para compreender, quanto mais remediar ou abordar quando os impérios administrativos do governo municipal, descoordenados, os atacam unilateralmente e de longe, um de cada vez. Outra vez são os cegos apalpando o elefante. A impotência e sua companheira, a ineficiência, tornam-se quase palpáveis nessas audiências.
Por outro lado, as audiências são animadoras, pela grande vitalidade, seriedade e sensibilidade que muitos dos cidadãos demonstram nessas ocasiões. Pessoas bem comuns, inclusive os pobres, os discriminados, os de pouca instrução, demonstram nesses momentos sua grandeza de espírito, e não estou sendo sarcástica. Falam com sensatez e quase sempre com eloquência de coisas que elas conhecem diretamente, a partir de sua vivência diária. Falam apaixonadamente de preocupações que são circunscritas, mas nunca limitadas. Sem dúvida também se dizem coisas bobas, e inverdades, e coisas claramente ou ligeiramente interesseiras; e isso também é bom para que se constate a repercussão dessas declarações. Acho que nós, ouvintes, raramente somos enganados; nossa reação deixa claro que compreendemos e avaliamos essas opiniões pelo que elas são. A população da cidade tem vivência, responsabilidade e interesse de sobra. Há ceticismo, mas também há confiança, e esta, claro, é o que mais conta.
Os oito dirigentes que se sentam atrás da bancada elevada (não podemos chamá-los de servidores do povo, como é de praxe, porque servidores conheceriam melhor os negócios de governo), esses dirigentes também não são sujeitos deploráveis. A maioria dos presentes, acho, está feliz por ter pelo menos uma chance ínfima, vaga (que raramente se efetiva), de prevalecer sobre eles para defender-se dos simplismos dos especialistas, os cegos que apalpam o elefante. Observamos atentamente os dirigentes, da melhor maneira possível. A energia, a perspicácia e a sensibilidade deles são, em geral, louváveis. Não vejo por que achar mais que isso. Não são garotos diante de um trabalho para homens; são homens diante de um trabalho para super-homens.
O problema é que eles tentam lidar com os detalhes íntimos de uma grande metrópole por intermédio de uma estrutura organizada para apoiá-los, aconselhá-los, informá-los, orientá-los e pressioná-los que se tornou anacrônica. Não há torpeza nessa situação, nem a torpeza de empurrar a responsabilidade para os outros; a torpeza, se se pode chamar assim, é o fracasso bastante compreensível da nossa sociedade em acompanhar as mudanças históricas prementes.
As mudanças históricas pertinentes neste caso são não só o crescimento descomunal das grandes cidades como também o das responsabilidades – de habitação, bem-estar social, saúde, educação, planejamento regulamentar – assumidas pelos governos dos grandes municípios. Não é só Nova York que não consegue enfrentar essas profundas mudanças circunstanciais com mudanças funcionais adequadas na estrutura administrativa e de planejamento. Todas as grandes cidades norte-americanas encontram-se no mesmo dilema.
Quando as questões atingem de fato um novo grau de complexidade, a única saída é engendrar meios de manter as coisas adequadamente nesse novo nível. A alternativa é o que Lewis Mumford chamou apropriadamente de “desconstrução”, destino das sociedades que não conseguem manter a complexidade de que se compõem e dependem.
O pseudoplanejamento urbano implacável, simplista, e o pseudodesenho urbano que temos atualmente é uma forma de “desconstruir” cidades. Porém, embora isso tenha sido definido e santificado por teorias reacionárias que na verdade glorificam a “desconstrução” das cidades, hoje em dia a prática e a influência desse tipo de planejamento não se fundam apenas na teoria. Gradativa, imperceptivelmente, quando a organização administrativa urbana não conseguiu desenvolver-se convenientemente junto com o crescimento e a complexidade das cidades, a “desconstrução” urbana tornou-se uma necessidade prejudicial, porém imperativa, para o pessoal de planejamento e outras equipes administrativas, que também têm diante de si um trabalho de super-homens. As soluções rotineiras, implacáveis, desastrosas e simplistas para todos os tipos de necessidades físicas das cidades (sem falar das necessidades sociais e econômicas) só podem ser inventadas por máquinas administrativas que perderam o poder de compreender, manejar e avaliar uma infinidade de detalhes vitais, únicos, complexos e interdependentes.
Pensemos um instante nas metas que o planejamento urbano precisa procurar obter, se tiver como objetivo a vitalidade urbana.
O planejamento para a vitalidade deve estimular e catalisar o maior espectro e a maior quantidade possível de diversidade em meio aos usos e às pessoas em cada distrito da cidade grande; esse é o alicerce fundamental da força econômica, da vitalidade social e do magnetismo urbanos. Para obtê-lo, os planejadores devem diagnosticar com precisão, em lugares específicos, o que falta para gerar diversidade e, depois, ter como meta suprir essas lacunas da melhor maneira possível.
O planejamento para a vitalidade deve propiciar uma interpenetração contínua de vizinhanças, cujos usuários e proprietários informais possam dar uma grande contribuição mantendo a segurança dos espaços públicos, lidando com estranhos, de modo que sejam um trunfo e não uma ameaça, garantindo a vigilância informal das crianças nos lugares públicos.
O planejamento para a vitalidade deve combater a existência nociva das zonas de fronteira desertas e deve ajudar a promover a identificação das pessoas com distritos que são extensos, variados e ricos em contatos internos e externos o suficiente para lidar bem com os problemas difíceis, inevitáveis e naturais da vida nas grandes cidades.
O planejamento para a vitalidade deve visar à recuperação de cortiços, criando condições para convencer uma grande porcentagem dos moradores, sejam quais forem, a permanecer por livre escolha, de modo que a diversidade de pessoas aumente sempre, e a comunidade se mantenha, tanto para os antigos residentes quanto para os moradores que se incorporem a ela.
O planejamento para a vitalidade precisa transformar a autodestruição da diversidade e outros usos indiscriminados do dinheiro em forças construtivas, impedindo, por um lado, que haja possibilidade de degradação e, por outro, estimulando um bom ambiente econômico para os projetos pessoais numa área mais ampla da cidade.
O planejamento para a vitalidade deve explicitar a ordem visual das cidades, por meio da promoção e da compreensão da ordem funcional, ao contrário de impedi-la e negá-la.
Sem dúvida, isso não é tão difícil quanto parece, porque todas essas metas estão inter-relacionadas. Seria impossível executar qualquer uma delas sem executar as outras simultaneamente (e, até certo ponto, automaticamente). Entretanto, tais metas não podem ser alcançadas se os responsáveis pelo diagnóstico, pela elaboração de táticas, pela recomendação de medidas não souberem o que estão fazendo. Devem ter a respeito não um conhecimento generalizado, mas um conhecimento detalhado sobre os lugares específicos e únicos da cidade com os quais estão lidando. Eles podem adquirir boa parte das informações de que precisam com ninguém senão os próprios moradores do lugar, pois não há quem saiba mais a respeito.
Nesse tipo de planejamento, não basta que os administradores de várias áreas conheçam serviços e técnicas específicas. Eles precisam conhecer, e conhecer a fundo, lugares específicos.
Só super-homens conseguiriam entender uma cidade grande por inteiro, ou como um grupo de bairros, com o detalhamento necessário para orientar medidas construtivas e evitar medidas impensadas, gratuitas, destrutivas.
Existe hoje a crença generalizada entre muitos especialistas em cidades de que os problemas urbanos que fogem à compreensão e ao controle de planejadores e administradores só podem ser solucionados a contento se forem ampliados os territórios em questão e os problemas a eles vinculados, para que sejam enfrentados mais “amplamente”. Isso é escapismo por incapacidade intelectual. “Uma Região”, disse alguém com um toque de ironia, “é uma área seguramente maior do que a última cujos problemas não conseguimos solucionar.”
Atualmente, o governo de uma cidade grande não passa de um governo de cidade pequena que foi expandido e adaptado de modo bem conservador para lidar com incumbências maiores. Isso tem provocado resultados estranhos e, no fim das contas, desastrosos, porque as cidades grandes apresentam problemas operacionais que são intrinsecamente diferentes dos apresentados pelas cidades pequenas.
Há semelhanças, claro. Como qualquer assentamento, uma cidade grande tem um território para administrar e, em consequência, os diversos serviços que atendem a ele. E, da mesma maneira que nos assentamentos pequenos, é lógico e prático organizar esses serviços verticalmente nas grandes cidades – quer dizer, cada serviço tem sua própria organização como, por exemplo, departamento de parques, departamento de saúde, departamento de trânsito, órgãos habitacionais, departamento de hospitais, departamento de abastecimento de água, departamento de vias públicas, departamento de licenciamento, departamento de polícia, departamento de saneamento e coisas parecidas, que abrangem toda a cidade. De tempos em tempos surgem novos serviços – departamentos para combater a poluição atmosférica, órgãos de reurbanização, órgãos de trânsito e assim por diante.
Todavia, em função da enorme quantidade de trabalho que esses órgãos têm nas grandes cidades, mesmo os mais tradicionais precisam realizar várias divisões internas com o passar do tempo.
Muitas dessas divisões são também verticais: vários órgãos são divididos internamente em setores com incumbências específicas, cada um deles de novo abrangendo toda a cidade. Assim, por exemplo, o departamento de parques costuma ter setores de paisagismo, manutenção, planejamento de áreas de recreação, programas de recreação e assim por diante, todos sob um comando máximo. Os órgãos habitacionais têm setores responsáveis por seleção e planejamento de áreas, manutenção, bem-estar social, triagem de moradores, e assim por diante – cada setor sendo um órgão complexo, e todos sob um comando máximo. O mesmo se aplica aos conselhos de educação, departamentos de bem-estar social, comissões de planejamento e assim por diante.
Além dessas divisões verticais de responsabilidades, muitos órgãos administrativos também possuem divisões horizontais: são divididos em setores territoriais, para coletar informações ou executar serviços, ou ambos. Assim temos, por exemplo, distritos policiais, distritos de saúde, distritos de bem-estar social, delegacias de educação e distritos de parques, e assim por diante. Em Nova York, os gabinetes dos cinco diretores das regiões administrativas têm plena responsabilidade por uns poucos serviços, principalmente ruas (mas não trânsito) e diversos serviços de obras civis.
Cada uma das várias divisões internas de atribuições, verticais ou horizontais, tem uma lógica própria, o que significa uma lógica vazia. Se juntarmos todos eles numa grande cidade, o resultado é caótico.
O resultado é naturalmente diferente numa cidade pequena, sejam quais forem as divisões internas dos serviços. Pensemos um instante numa cidade como New Haven, que tem apenas 165 mil habitantes. Nessa escala urbana reduzida, o chefe do órgão administrativo e os membros de sua equipe podem comunicar-se e coordenar-se com facilidade e naturalidade com todos os chefes e as equipes administrativas dos outros serviços, se quiserem. (Se eles têm ou não boas ideias para transmitir e coordenar é, obviamente, outra questão.)
Mais importante ainda, os chefes e as equipes dos órgãos, na escala de uma cidade pequena, podem ser especialistas em dois assuntos simultaneamente: especialistas em sua área e também especialistas na própria New Haven. A única maneira de um administrador (ou qualquer pessoa) conhecer e compreender um lugar é, em parte, por meio de informações e observações diretas ao longo do tempo e, mais ainda, assimilando o que outras pessoas, tanto do governo como de fora dele, conhecem do lugar. Parte dessas informações pode ser mapeada e tabulada; parte, não. Juntando esses recursos, New Haven é compreensível para uma pessoa que tenha uma inteligência normal. Não há outro jeito de os inteligentes e também os néscios conhecerem um local a fundo.
Em síntese, New Haven, como estrutura administrativa, tem coerência interna relativa que se deve a seu tamanho.
A coerência relativa de uma localidade como New Haven é vista como natural, no que diz respeito à administração. Podem existir outras maneiras de melhorar a eficiência administrativa e outras particularidades da atuação, mas certamente ninguém tem a ilusão de que para isso seja necessário reorganizar New Haven, de modo que tenha um oitavo de um departamento de parques, 6,25 distritos de saúde, um terço de um distrito de bem-estar social, um treze avos de uma equipe de planejamento, metade de uma delegacia de educação, um terço de outra delegacia de educação e dois nonos de uma terceira delegacia de educação, 2,5 departamentos de polícia e um tantinho de um diretor de trânsito.
Num esquema desses, muito embora tenha apenas 165 mil habitantes, New Haven não seria compreendida em sã consciência por ninguém. Algumas pessoas veriam só uma parte dela; outras a veriam por inteiro, mas só superficialmente, como uma parte relativamente desligada de uma coisa muito maior. E, num tal esquema, seus serviços, o planejamento inclusive, também não poderiam ser geridos com eficiência e sensatez.
No entanto, é assim que tentamos coletar informações, gerir serviços e fazer o planejamento de lugares dentro das grandes cidades. Evidentemente, os problemas que quase todos querem solucionar, e são passíveis de solução, escapam à compreensão e ao controle de todos.
Multipliquem o fracionamento hipotético que fiz com New Haven por dez ou cinquenta em cidades com uma população de meio milhão a oito milhões (e lembrem-se de que as dificuldades intrínsecas que deverão ser compreendidas e resolvidas crescem não aritmeticamente com a população, mas geometricamente). Depois, subtraiam as diferentes áreas de atuação do emaranhado em que se encontram nas localidades e juntem-nas em grandes impérios departamentais e burocráticos.
Esses impérios extensos e fracionados a esmo relacionam-se por meio de labirintos de coordenação, comunicação e contatos. Esses labirintos têm tantos meandros, que é difícil esquadrinhá-los ou ter acesso a eles, quanto mais que funcionem como vias confiáveis e abertas ao entendimento entre os departamentos, ou canais de informações compartilhadas sobre lugares específicos, ou linhas de ação para executar o que deve ser feito. Os cidadãos e os servidores podem perambular indefinidamente por esses labirintos, transmitindo o que restou de muitas esperanças antigas, mortos de cansaço.
Foi assim que em Baltimore um grupo de cidadãos destacados, que desfrutavam a vantagem do aconselhamento local e não tomavam atitudes precipitadas ou desnecessárias, promoveu reuniões, negociações e uma série de consultas e sanções por um ano inteiro – só para obter permissão para colocar a estátua de um urso num parquinho! Empreendimentos tão simples tornam-se tremendamente difíceis nesses labirintos, e os empreendimentos difíceis, impossíveis.
Vejam esta notícia do New York Times de agosto de 1960 sobre um incêndio que deixou seis pessoas feridas num apartamento de propriedade do município. O apartamento, diz o jornal, “havia sido classificado como altamente inseguro em um relatório do Corpo de Bombeiros para o Departamento de Edificações”. O diretor de Edificações disse, em defesa de seu departamento, que os fiscais haviam tentado entrar no prédio muitas vezes, mesmo depois de 16 de maio, quando a prefeitura tomou posse do imóvel. A notícia diz o seguinte:
Na verdade, o Departamento de Imóveis [órgão municipal que possuía o edifício] não notificara o Departamento de Edificações até 1
de julho de que havia adquirido o imóvel, disse o diretor. E só vinte e cinco dias depois a notificação passou por todas as instâncias entre o Departamento de Edificações, no vigésimo andar da Prefeitura, e o setor de habitação [do Departamento de Edificações], no décimo oitavo andar. Quando a informação chegou ao setor de habitação em 25 de julho, houve um telefonema para o Departamento de Imóveis, pedindo licença para a inspeção. Primeiro o Departamento de Imóveis disse não ter as chaves do edifício, afirmou o diretor [de Edificações]. Começaram os entendimentos (…). Eles ainda se desenrolavam quando ocorreu o incêndio no sábado [13 de agosto]. Foram retomados na segunda-feira seguinte por um funcionário do Departamento de Edificações que não tinha ouvido falar do incêndio (…).
Se é muito desagradável, inútil e entediante acompanhar toda essa absurda falta de comunicação, imaginem quão desagradável, inútil e entediante não é enfrentá-la. As pessoas confiantes, ativas e diligentes que trabalham nesses impérios precisam tornar-se desinteressadas e resignadas para se preservar (não para preservar o emprego, como se costuma pensar, mas para preservar a si mesmas).
E, se a transmissão eficiente de informações e a coordenação de ações eficaz são desconcertantes dentro do governo, imaginem quais não seriam a desorientação e a frustração daqueles que precisam lidar com elas pelo lado de fora. Apesar de ser difícil e demorado – e também dispendioso – organizar um grupo de pressão política e exercê-la sobre os servidores eleitos, os cidadãos das cidades grandes acabam descobrindo que essa geralmente é a única maneira de se desvencilharem dos trâmites ainda mais complicados e demorados da burocracia não eleita2.
A ação e a pressão política serão sempre necessárias, mais ainda numa sociedade que se autogoverna, para enfrentar e desfazer conflitos reais de interesses e opiniões. Outra coisa é descobrir, como ocorre hoje em todas as grandes cidades, que é necessário um esforço enorme – e geralmente vão – só para reunir e tentar interessar os especialistas adequados em vários serviços que necessariamente devem ser contatados para lidar com um único problema ou necessidade de um único lugar. E é ainda mais ridículo que, quando esses “entendimentos para estabelecer uma cooperação” – como se costuma chamá-los na Comissão de Planejamento da Cidade de Nova York – são finalmente conseguidos e formulados, eles tendem a ser uma cooperação entre a ignorância de especialistas e a ignorância de outros especialistas. Só dá para perceber como um bairro de cidade grande é complicado quando se tenta explicá-lo a especialistas de áreas específicas. É como tentar comer com um travesseiro na boca.
Os cidadãos das grandes cidades são sempre censurados por não participarem ativamente do governo. O surpreendente é que eles continuem tentando.
Várias vezes o repórter Harrison Salisbury, em artigos profundos sobre delinquência publicados no New York Times, menciona os aparentemente irremovíveis obstáculos ao desenvolvimento impostos pela informação fragmentada, por uma administração fragmentada, por uma responsabilidade fragmentada, por departamentos fragmentados. “A selva de verdade é no gabinete dos burocratas”, escreve ele, citando um pesquisador da delinquência. E o próprio Salisbury resume: “Contradição, confusão, departamentos sobrepostos estão na ordem do dia.”
Supõe-se frequentemente que essa obstrução e essa inércia sejam propositais ou no mínimo resultado do lado ruim da administração. “Hipocrisia”, “zelo burocrático”, “protecionismo do status quo”, “eles não se importam” são palavras e expressões que surgem em relatos desesperados de cidadãos ao falar de suas frustrações nos meandros dos impérios municipais. Sem dúvida existe esse lado ruim – ele prospera nos círculos em que há muitos para fazer muito pouco em face de tamanha necessidade –, mas nem a maldade nem a baixeza dos indivíduos produzem tal bagunça. Nem santos conseguiriam administrar bem sistemas assim.
A estrutura administrativa em si é falha porque ela foi adaptada mais do que deveria para funcionar. É assim que se desenrolam as questões que envolvem o homem. Chega um momento em que o nível de complexidade aumenta tanto, que é necessário inventar.
As cidades lutaram para inventar alguma coisa que enfrentasse esses problemas da administração fragmentada – inventaram a comissão de planejamento.
Na teoria da gestão urbana, as comissões de planejamento são os principais órgãos de coordenação da administração. São um órgão bem recente dos governos municipais norte-americanos, pois a maioria delas foi instituída nos últimos vinte e cinco anos em decorrência do fato óbvio de que os departamentos da gestão urbana eram incapazes de coordenar planos diferentes sobre mudanças físicas nas cidades.
A invenção foi ruim por ter reproduzido e, de certa maneira, reforçado os mesmos erros que deveria evitar.
As comissões de planejamento, como os outros impérios burocráticos, organizam-se fundamentalmente segundo o modelo vertical, com responsabilidade vertical fracionada, e, quando a necessidade e a premência impõem, segundo divisões horizontais descoordenadas aqui e ali (distritos de renovação, áreas de preservação etc.), reunidas sob um comando máximo. Com esse esquema, mantém-se a situação em que ninguém, inclusive a comissão de planejamento, é capaz de compreender lugares da organização urbana a não ser de modo genérico ou fragmentado.
Além do mais, na condição de coordenadoras dos planos de outros órgãos municipais, as comissões de planejamento na maioria das vezes avaliam as propostas só depois de os funcionários de outros órgãos terem pelo menos concebido provisoriamente o que querem fazer. Essas propostas vêm de dezenas de lugares diferentes para a comissão de planejamento, que só depois deve julgar se elas fazem sentido entre si e de acordo com as informações, os conceitos e as ideias da própria comissão de planejamento. Mas o momento crucial para coordenar as informações é antes e durante o período em que são concebidas as propostas ou as táticas, ainda que provisórias, feitas para qualquer serviço específico em qualquer lugar específico.
Evidentemente, com um sistema tão irreal quanto esse, os coordenadores são incapazes de coordenar até a si mesmos, quanto mais aos outros. A comissão de planejamento de Filadélfia é reconhecida como uma das melhores do país, e talvez até seja. Porém, quando se tenta descobrir por que as criações estéticas prediletas da comissão de planejamento, os “calçadões” Greenway3, não têm na realidade a aparência que tinham nas plantas dos urbanistas, fica-se sabendo do próprio diretor de planejamento que o departamento de vias públicas não entendeu a ideia ou coisa parecida e não forneceu os pavimentos adequados, que o departamento de parques, o órgão habitacional ou a empreiteira não entenderam a ideia ou coisa parecida e não fizeram corretamente os espaços livres, que os vários departamentos municipais ligados aos equipamentos de rua não entenderam a ideia ou coisa parecida – e, acima de tudo, que os habitantes não entenderam a ideia ou coisa parecida. Todos esses detalhes são tão extenuantes e decepcionantes, que mais vale a pena criar um novo plano do que seria “ideal” para algum outro lugar do que perambular pelos labirintos tentando inutilmente juntar os pedaços do plano do ano passado. Contudo, essas questões são simples em comparação com a coordenação necessária para atacar problemas de planejamento realmente difíceis, como recuperação de cortiços, segurança, aprimoramento da ordem das cidades e um ambiente econômico mais propício à diversidade.
Devido às circunstâncias, as comissões de planejamento tornaram-se não instrumentos eficientes para a compreensão e a coordenação da imprescindível infinidade de detalhes urbanos complexos, mas sim instrumentos destrutivos, mais ou menos eficazes, em “desconstruir” e simplificar as cidades. Como caminham as coisas, não dá para evitar que isso aconteça. As equipes das comissões não sabem, nem podem saber, o suficiente sobre qualquer lugar das cidades para empreender algo diferente, por mais que se esforcem. Mesmo que o ideário do planejamento mudasse das visões da Cidade-Jardim Beautiful Radieuse para o planejamento urbano, elas não conseguiriam executar um planejamento urbano. Não têm meios para coletar e compreender as necessárias informações profundas, multifacetadas, em parte em função da sua própria estrutura inadequada para a compreensão das cidades grandes e em parte em função das mesmas inadequações estruturais de outros departamentos.
Vejam uma coisa curiosa sobre a coordenação tanto de informações quanto de ações nas cidades, que é o ponto essencial da questão: a coordenação fundamental necessária resume-se à coordenação de serviços diferentes em lugares específicos. Trata-se ao mesmo tempo do tipo de coordenação mais difícil e mais indispensável. A coordenação ao longo da organização vertical de responsabilidades fracionadas é comparativamente mais fácil e também menos vital. Ainda assim, se a coordenação vertical é facilitada pela estrutura administrativa, todos os outros tipos tornam-se mais difíceis, devido à impossibilidade de coordenação localizada.
Intelectualmente, a importância da coordenação local é pouco reconhecida e valorizada na teoria da gestão urbana. As próprias comissões de planejamento são, mais uma vez, a questão principal. Os planejadores gostam de pensar que lidam globalmente com a cidade em geral e que sua importância é muito grande porque eles “veem o quadro como um todo”. Mas a ideia de que são necessários para lidar com a cidade deles “como um todo” é ilusória. Além do planejamento de grandes vias (que é abominável, também porque ninguém entende das localidades afetadas) e a incumbência quase só orçamentária de racionalizar e distribuir verbas para despesas com melhorias essenciais apresentadas em orçamentos provisórios, a máquina das comissões de planejamento e seu pessoal raramente lidam, na realidade, com a cidade grande como um organismo completo.
Na realidade, pela natureza do trabalho, quase todo o planejamento urbano preocupa-se com ações relativamente pequenas e específicas executadas aqui e ali, em ruas, bairros e distritos específicos. Para saber se são bem ou mal executadas – saber, afinal, o que deve ser feito –, é mais importante conhecer aquela localidade específica do que saber quantas coisas da mesma categoria estão implantadas em outros locais e o que está sendo feito com elas. Não há conhecimento que substitua o conhecimento do local no planejamento, não importa se ele é criativo, coordenado ou antecipatório.
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imprescindível não a invenção de um instrumento de coordenação geral, mas sim uma invenção que torne possível a coordenação onde a necessidade é mais premente – em localidades específicas e únicas.
Em poucas palavras, as grandes cidades devem ser divididas em distritos administrativos. Seriam divisões horizontais do governo municipal, mas, em vez de uma horizontalidade descoordenada, estariam ligadas ao governo municipal como um todo. Os distritos administrativos substituiriam as subdivisões primárias, básicas da maioria dos órgãos municipais.
Os funcionários principais dos órgãos, abaixo do diretor-chefe, seriam os administradores distritais. Cada um deles supervisionaria todos os aspectos dos serviços de seu departamento dentro do seu distrito; a equipe que prestaria o serviço à localidade ficaria sob suas ordens. As mesmas fronteiras do distrito seriam iguais para cada departamento que trabalhasse diretamente com a vida e o planejamento do distrito – como tráfego, bem-estar social, escolas, polícia, parques, aplicação do código de obras, saúde, subvenção de moradias, bombeiros, zoneamento, planejamento.
Cada distrito e os serviços nele prestados ficariam a cargo de um administrador distrital. Esse conhecimento duplo não é excessivo para uma pessoa de inteligência normal – especialmente porque os distritos têm outros homens e mulheres que observam o mesmo lugar de ângulos diferentes e são também responsáveis por compreendê-lo e servi-lo.
Esses distritos administrativos teriam de corresponder à realidade, em vez de ser segmentados por um novo esquema. Eles teriam de corresponder aos distritos que funcionam atualmente – ou têm potencial para funcionar –, como entidades sociais e políticas da maneira exposta no Capítulo 6.
Com esse tipo de estrutura de informação e ação de governo prestes a acontecer, poderíamos esperar que as várias agências de prestação de serviços públicos a toda a cidade se adaptassem à administração distrital.
A ideia da administração municipal horizontal não é nova, como dito antes. Há precedentes na horizontalidade descoordenada e desarmônica a que muitas administrações municipais recorreram. Há precedentes também nas denominações hoje corriqueiras, como distritos de renovação e de preservação. Quando Nova York começou a experimentar a preservação de vizinhanças em alguns lugares, os administradores desse programa logo descobriram que não conseguiriam realizar nada de útil, a menos que fizessem acordos especiais e excepcionais pelo menos com o departamento de edificações, o corpo de bombeiros, o departamento de polícia, o departamento de saúde e o departamento de saneamento para que atendessem os membros da equipe responsável especificamente por aquele lugar. Isso foi necessário só para coordenar algumas melhorias mais simples. A municipalidade descreve esse esquema de horizontalidade integrada como “um magazine de serviços para o bairro”, reconhecido tanto pela prefeitura quanto pelos cidadãos atingidos como um dos maiores benefícios recebidos por um bairro declarado área de preservação!
Entre os precedentes mais notáveis da administração e da incumbência horizontal estão as associações comunitárias das grandes cidades, que sempre se organizaram tendo por princípio um pedaço de território, em vez de uma profusão de serviços verticais desarticulados. Essa é uma das razões principais de as associações comunitárias serem tão eficazes, de seus membros geralmente conhecerem o lugar tão profundamente quanto o próprio trabalho e de os serviços dessas associações, via de regra, nem se tornarem antiquados nem conflitarem com os outros. Em geral, as associações comunitárias de uma cidade grande trabalham juntas bastante – em levantamento de recursos, procura de pessoal, troca de ideias, pressão por legislação –, e nesse sentido são mais do que organizações horizontais. Na verdade, são ao mesmo tempo horizontais e verticais, mas estruturalmente a coordenação é mais fácil nos pontos em que costuma ser mais difícil.
Além disso, a ideia de distritos administrativos em cidades norte-americanas também não é nova. Tem sido proposta de tempos em tempos por grupos de cidadãos – em Nova York foi sugerida em 1947 pela competente e bem-informada União dos Cidadãos, que chegou até a mapear os distritos administrativos viáveis, baseada em distritos urbanos empíricos. O mapa de distritos da União dos Cidadãos é ainda hoje o mapeamento mais compreensível e lógico da cidade de Nova York.
Geralmente, no entanto, as sugestões sobre administração distrital em grandes cidades enveredam por raciocínios inúteis, e esta, acho eu, é uma das razões de seu fracasso. Às vezes, ela é concebida, por exemplo, como um órgão de “aconselhamento” formal do governo. Mas, na prática, os órgãos consultivos que não têm autoridade nem responsabilidades são mais do que improdutivos na administração municipal. Tomam o tempo de todo o mundo e invariavelmente não obtêm mais sucesso do que qualquer pessoa em atravessar os complicados labirintos dos impérios burocráticos segmentados. E também às vezes os distritos administrativos são concebidos como um “serviço-pivô” único, como planejamento, por exemplo, e também este se mostra ineficaz na solução de coisas mais importantes. Isso porque, para funcionarem como instrumentos de governo, os distritos administrativos precisam abranger as atividades múltiplas de governo. E às vezes se deturpa a ideia com a proposta de se construírem “centros administrativos”, de modo que se confunde o valor da ideia com a superficialidade de dar às cidades um novo tipo de enfeite em forma de empreendimento. As repartições da administração distrital teriam de estar dentro do distrito a que pertencem e deveriam estar próximas umas das outras. No entanto, o mérito desse esquema é não ter nada que impressione visual ou fisicamente. A manifestação visível mais importante da administração distrital seria a presença de pessoas conversando sem ter de fazer antes “entendimentos para estabelecer uma cooperação”.
A administração distrital, na forma de uma estrutura de governo municipal, é intrinsecamente mais complexa do que a adaptação da estrutura administrativa de cidade pequena que temos atualmente. A gestão urbana precisa ter uma estrutura básica mais complexa para funcionar com mais simplicidade. As estruturas atuais, paradoxalmente, são no fundo muito simples.
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preciso entender que a administração distrital em cidades grandes não pode ser “pura” ou dogmática, esquecendo as ligações verticais. Uma cidade grande, embora grande, não deixa de ser uma cidade, com grande interdependência entre seus lugares e suas zonas. Não é uma reunião de cidadezinhas e, se fosse, não existiria como cidade.
A reorganização dogmática do governo sob uma administração horizontal pura teria uma simplicidade tão fatal e uma inviabilidade tão caótica quanto as trapalhadas atuais. Por essa mesma razão ela seria inviável caso a tributação e todo o repasse de verbas precisem ser funções municipais centralizadas. Além disso, algumas das operações urbanas transcendem completamente a administração distrital; grande parte dos detalhes intrínsecos e complexos do conhecimento sobre o distrito é irrelevante para elas, e os detalhes que lhe forem relevantes podem ser rapidamente conhecidos pedindo-se as informações necessárias aos administradores distritais, que conhecem bem o lugar. São exemplos disso o abastecimento de água, o combate à poluição atmosférica, as relações trabalhistas e a administração de museus, zoológicos e prisões. Mesmo dentro de certos departamentos, alguns serviços não fazem sentido como funções distritais, ao passo que outros fazem. Por exemplo, seria absurdo um departamento de licenças dar ao licenciamento de táxis o caráter de uma função distrital, mas vendas de artigos de segunda mão, locais de entretenimento, bancas de vendas, chaveiros, agências de emprego e muitas outras atividades que requerem licenciamento poderiam muito bem ficar a cargo da administração distrital.
Fora isso, as cidades grandes têm condições de manter certos especialistas, que lhes podem ser úteis, mas nenhum distrito administrativo precisaria deles constantemente. Essas pessoas poderiam atuar como técnicos e especialistas itinerantes de determinados serviços, sob as ordens do administrador distrital cujo distrito tenha necessidade deles.
Ao ser instituída, a administração distrital deveria tentar que todos os serviços dependentes do conhecimento do distrito adotassem essa nova forma de organização estrutural. Todavia, com relação a alguns serviços e partes deles, seria necessário avaliar seu funcionamento. Poderiam ser feitas várias adaptações. O sistema não precisa obedecer a um esquema de funcionamento rígido, imutável. Na verdade, para colocá-lo em prática e fazer mudanças posteriormente não seria preciso um esforço maior do que o exigido hoje em dia para os serviços que fazem adaptações em sua organização por meio de tentativa e erro. O que seria imprescindível para efetivá-lo é um prefeito decidido, que realmente acreditasse num governo popular (os dois geralmente estão juntos).
Em síntese, os departamentos verticalizados de serviços que abrangem toda a cidade ainda existiriam e trocariam informações e ideias com os distritos. Porém, em quase todos os casos, a organização interna de cada um dos diversos serviços seria racionalizada e se adaptaria automaticamente à de outros serviços, de modo que as atividades entre eles e deles com os distritos fossem realmente funcionais. Quanto ao planejamento, ainda existiria o serviço de planejamento urbano, mas praticamente toda a sua equipe (e esperamos que a mais capaz) atenderia à cidade descentralizadamente, nos distritos administrativos, que são o único âmbito em que o planejamento pela vitalidade pode ser apreendido, coordenado e executado.
Os distritos administrativos de uma cidade grande atuariam logo de início como entidades políticas, porque disporiam de verdadeiros órgãos de informação, aconselhamento, decisão e execução. Essa seria uma das principais vantagens desse sistema.
Os cidadãos das cidades grandes precisam de pontos de apoio para pressionar e fazer com que sejam reconhecidos e respeitados seus desejos e seu conhecimento. Os distritos administrativos teriam de ser esses pontos de apoio. Muitas das lutas travadas atualmente nos labirintos do governo municipal verticalizado – ou decididas à revelia, porque os cidadãos nunca sabem o que os atingiu – seriam transferidas para a arena dos distritos. Isso é indispensável para a autogestão das cidades grandes, mesmo que ela seja vista como um processo criativo ou um processo de supervisão (claro que ela é ambas as coisas). Quanto maior, mais impessoal, mais incompreensível se tornar o governo da cidade grande, e quanto mais indistintos se tornarem as necessidades e os problemas em questões exclusivamente locais, mais ralas e ineficientes se tornarão as ações e a supervisão por parte dos cidadãos. É inútil esperar que os cidadãos ajam com responsabilidade e tenham verve e experiência em questões urbanas abrangentes quando se torna impossível a autogestão de assuntos locais, quase sempre os que mais importam para o povo.
Como entidade política, o distrito administrativo precisaria de um chefe, e certamente o teria, formal ou informalmente. Uma maneira formal – e por escrito seria ainda mais clara – seria indicar um “vice-prefeito”, que responderia ao prefeito municipal. No entanto, um funcionário indicado como chefe logo seria suplantado por algum servidor eleito, pelo simples motivo de que os grupos de cidadãos sempre pressionarão, se tiverem condições, o servidor que elegeram – e o apoiarão se ele os atender – quando desejarem que a administração veja as coisas como eles veem. Os eleitores, percebendo formas de fazer valer sua influência, têm inteligência suficiente para usar seu poder onde ele tiver sustentação. É quase inevitável que um funcionário público eleito cujo eleitorado corresponda mais ou menos ao distrito venha a se tornar, de fato, uma espécie de “prefeito” local. Isso ocorre hoje nos distritos de cidades grandes que obtêm bons resultados sociais e políticos4.
Qual é o tamanho adequado de um distrito administrativo?
Geograficamente, os distritos urbanos empíricos que funcionam de modo eficiente raramente ultrapassam cerca de 5,7 quilômetros quadrados; em geral, são menores.
Todavia, existe pelo menos uma exceção notável, que pode ser significativa. O distrito de Back-of-the-Yards de Chicago tem área de 12 quilômetros quadrados, cerca do dobro do tamanho máximo de um distrito eficiente, de acordo com a análise de outros lugares.
Na verdade, o Back-of-the-Yards já funciona como um distrito administrativo, não formal nem teoricamente, mas na prática. No Back-of-the-Yards, o governo local que mais conta não é o governo municipal, genérico, mas sim o Conselho do Back-of-the-Yards, que descrevi resumidamente no Capítulo 16. As decisões que só possam ser tomadas no âmbito formal do governo são transmitidas pelo Conselho ao governo municipal, que é, devese dizer, extremamente diligente. Além disso, o próprio Conselho presta alguns serviços que normalmente são prestados pelo governo formal, quando são prestados.
Talvez seja essa capacidade do Back-of-the-Yards de funcionar como uma unidade com força governamental real, embora informal, que lhe possibilite ter uma área geográfica de extensão incomum. Resumindo, a identidade clara do distrito, cuja base em geral depende quase totalmente da inter-relação de usos interna, é reforçada aqui por uma organização governamental sólida.
Isso poderia ter valor para as áreas das grandes cidades onde o uso residencial é predominante, mas cuja densidade é muito baixa para conciliar uma quantidade apropriada de moradores com a área viável e comum de um distrito. Deve-se fazer com que tais áreas venham a ter, com o tempo, uma concentração de usos urbanos, e pode ser que uma única área geograficamente extensa acabe transformando-se em vários distritos; mas, ao mesmo tempo, se a experiência do Back-of-the-Yards significa o que eu acho que significa, a coesão propiciada pela administração distrital poderá levar essas áreas de baixa densidade a funcionar como distritos do ponto de vista político e social, e também administrativo.
Fora dos centros urbanos ou das áreas de grande concentração de indústrias, o uso residencial é quase sempre um dos usos principais mais presentes no distrito; o tamanho da população, portanto, é importante para o tamanho do distrito. No Capítulo 6, sobre bairros, defini um distrito empiricamente proveitoso como um lugar suficientemente grande (no tocante à população) para ter peso na cidade como um todo, mas suficientemente pequeno para que os bairros não sejam esquecidos ou ignorados. Isso quer dizer que eles podem ter entre 30 mil habitantes, em cidades como Boston e Baltimore, e um mínimo de 100 mil em cidades maiores, com um máximo provável de cerca de 200 mil. Acho que 30 mil é muito pouco para uma administração distrital eficaz; 50 mil seria um número mínimo mais adequado. O máximo de cerca de 200 mil, porém, é adequado para a administração, e também para um distrito considerado como um órgão social e político, pois qualquer número superior àquele excederá a unidade que se possa compreender no todo e em detalhe.
As próprias cidades grandes tornaram-se parte de territórios povoados ainda mais amplos, conhecidos nos dados censitários como Regiões Metropolitanas Padrão. Uma Região Metropolitana Padrão inclui uma cidade grande (às vezes mais de uma, como, por exemplo, as regiões metropolitanas de Nova York–Newark ou São Francisco–Oakland), e também as cidades vizinhas, cidades-satélites, vilas e subúrbios, que ficam fora das fronteiras políticas da cidade maior mas dentro de sua órbita econômica e social. O tamanho de uma Região Metropolitana Padrão, tanto geográfica quanto populacionalmente, teve sem dúvida um crescimento extraordinário nos últimos quinze anos. Isso se deve em parte ao dinheiro que inundou os arredores das cidades e minguou nas próprias cidades, como explicado no Capítulo 16, em parte ao fracasso das cidades em funcionar como cidades e em parte à expansão suburbana e semissuburbana em função desses dois motivos, a qual absorveu antigas vilas e pequenas cidades separadas.
Muitos problemas, particularmente os de planejamento, são comuns a esses núcleos urbanos da região metropolitana com governos próprios. Esta, e não a cidade grande, é a unidade mais importante no tocante ao combate à poluição da água, aos grandes problemas de transportes, ao desperdício e mau uso do solo, ou à preservação dos lençóis freáticos, das áreas naturais, dos grandes locais de recreação e de outros recursos.
Já que esses problemas reais e importantes existem e que não temos como solucioná-los administrativamente, foi desenvolvido um conceito chamado “Governo Metropolitano”. Sob o Governo Metropolitano, as localidades separadas politicamente continuariam a ter identidade e autonomia política em assuntos exclusivamente locais, mas seriam reunidas sob um governo geral que teria poderes ampliados de planejamento e órgãos administrativos para executar os planos. Uma fatia dos impostos de cada localidade iria para o Governo Metropolitano, ajudando a aliviar parte do ónus financeiro que as cidades carregam, sem compensação, para investir na infraestrutura central utilizada pelas cidades vizinhas. As fronteiras políticas, que constituem barreiras ao planejamento conjunto ou à manutenção mútua da infraestrutura metropolitana comum a todos, seriam, conclui-se, esquecidas.
A ideia do Governo Metropolitano é atraente não só para muitos planejadores; parece ter conquistado muitos importantes homens de negócios, que dizem em vários pronunciamentos que essa
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a maneira racional de resolver os “negócios de governo”. Os defensores do Governo Metropolitano têm plantas para comprovar que atualmente o planejamento da região metropolitana é inexequível. Essas plantas são mapas políticos de regiões metropolitanas expandidas. Perto do centro há uma unidade visivelmente grande, nítida, que representa o governo da cidade maior, a metrópole. Fora dela há um emaranhado de governos de cidades, condados, cidadezinhas e distritos que se sobrepõem, se repetem e se estrangulam, juntamente com toda sorte de regiões administrativas especiais, que surgiram por conveniência, alguns deles avançando sobre a cidade grande.
A região metropolitana de Chicago, por exemplo, tem cerca de mil unidades com governo próprio contíguas ou sobrepostas, além do governo municipal de Chicago. Em 1957, nossas 174 regiões metropolitanas continham uma miscelânea de 16.210 unidades de governo distintas.
“Colcha de retalhos dos governos” é a definição que mais se ouve, e é de certa forma correta. A moral da história é que colchas de retalhos como essas não podem funcionar bem; não constituem uma base viável nem para o planejamento nem para a ação metropolitana.
De vez em quando se apresenta aos eleitores a proposta do Governo Metropolitano. Os eleitores recusam-na inexorável e invariavelmente5.
Os eleitores estão certos, apesar de a ação conjunta e coordenada (e o apoio financeiro) ser muito necessária em vários dos problemas metropolitanos, e ainda mais necessária a coordenação localizada entre as diferentes unidades governamentais da região metropolitana. Os eleitores estão certos porque na prática nos faltam estratégias e táticas para praticar o governo metropolitano e o trabalho de planejamento em ampla escala.
Os mapas que supostamente explicariam a situação verdadeira contêm uma mentira monstruosa. A unidade nítida, clara, que representa o governo “unificado” da metrópole é, obviamente, uma colcha de retalhos administrativa ainda mais maluca do que a constituída pelos governos fragmentados ao seu redor.
Os eleitores têm a sensatez de recusar-se a integrar um sistema em que a grandiosidade significa desamparo local, planejamento implacável e simplista e caos administrativo – porque é isso que a grandiosidade municipal significa hoje. Como o desamparo diante de planejadores “vitoriosos” pode representar um avanço em relação à falta de planejamento? Como uma administração maior, com labirintos que ninguém consegue compreender ou percorrer, pode ser um avanço em relação à colcha de retalhos de governos suburbanos e distritais?
Já temos unidades governamentais que imploram por estratégias e táticas de gestão e planejamento metropolitanos viáveis, e essas unidades são as próprias cidades grandes. Uma administração metropolitana viável deve ser aprendida e executada, primeiro, dentro das grandes cidades, onde não há fronteiras políticas rígidas que a impeçam. É aí que devemos testar métodos para solucionar os grandes problemas comuns, sem, como corolário, dar livre curso a operações violentas em localidades e no processo de autogestão.
Se as grandes cidades podem aprender a administrar, coordenar e planejar no âmbito de regiões administrativas numa escala razoável, podemos vir a ser capazes, como sociedade, de lidar também com aquelas colchas de retalhos de governos e administrações em regiões metropolitanas mais amplas. Hoje não temos essa capacidade. Não temos experiência nem conhecimento para lidar com uma gestão ou um planejamento metropolitano de grandes proporções, a não ser na forma de adaptações cada vez mais inadequadas, a partir de um governo de cidade pequena.
1. Assim, em carta ao New York Times sobre a revisão de alvarás, Stanley M. Isaacs, vereador e ex-diretor da região administrativa de Manhattan, escreve: “Eles vão realizar uma audiência? Sem dúvida. Mas nós, com nossa experiência, sabemos o que isso significa. Serão audiências do mesmo tipo das que o Conselho de Orçamento costuma realizar. Primeiro, eles fazem uma reunião executiva”; [as sessões executivas são realizadas às quartas-feiras, um dia antes da audiência pública] “tudo se decide aí; depois a população é recebida com toda a polidez e ouvidos moucos.”
2. Há grupos com interesses especiais que às vezes usam sua “influência” para não terem o mesmo desapontamento – em sua área de interesse, é óbvio – que leva cidadãos comuns a fazer pressão sobre os administradores por meio de servidores eleitos. Um dos escândalos relacionados com a renovação urbana de Nova York eram os pagamentos feitos a Sydney S. Baron (chefe da assessoria de imprensa de Carmine G. DeSapio, líder do Partido Democrata) por seis mentores de empreendimentos de renovação subvencionados pelo governo federal. Um dos mentores declarou, segundo o New York Post “Seria ótimo que eu pudesse dizer que contratamos Baron por outro motivo que não sua influência. Esperaríamos durante meses para ter reuniões com os diretores – da Saúde, do Corpo de Bombeiros e da Polícia, por exemplo –, mas ele tinha como pegar o telefone e fazer as coisas andarem imediatamente.” A notícia diz ainda: “Baron negou categoricamente que tivesse sido contratado para ‘apressar o processo nos órgãos municipais’. ‘Só marquei duas reuniões, uma com a Saúde, outra com o Corpo de Bombeiros’, disse ele.”
3. Que obviamente não têm calçadões
4. Os “prefeitos” locais nesse sentido parecem surgir de uma conjunção de dois fatores: serem acessíveis e bem-sucedidos no que lhes pedem e o tamanho de seu eleitorado. Por causa do primeiro fator, as funções que eles desempenham tendem a diferir dentro de uma cidade. Mas o segundo fator também é importante. Assim, embora em muitas cidades os vereadores tenham condições de ser “prefeitos” locais, isso não faria sentido em Nova York, onde o eleitorado de vereadores (cerca de 300 mil pessoas) é grande demais para esse fim; em vez deles, os “prefeitos” locais são com mais frequência os deputados estaduais, que, simplesmente por terem um eleitorado bem menor na cidade (cerca de 115 mil pessoas), normalmente são chamados para negociar com o governo municipal. Em Nova York, os bons deputados estaduais negociam muito mais com o governo municipal, em nome dos cidadãos, do que com o Estado. Eles às vezes se mostram vitais como servidores municipais, embora isso não faça parte de suas responsabilidades na teoria. Isso é resultado de uma política distrital provisória.
5. Com exceção dos eleitores da região metropolitana de Miami. Todavia, para conseguir a aprovação do Governo Metropolitano, os proponentes lhe deram tão poucos poderes que a votação foi apenas simbólica.

