Vizinhança é uma palavra que passou a soar como um cartão de Dia dos Namorados*. Como conceito sentimental, “vizinhança” é prejudicial ao planejamento urbano. Dá lugar a tentativas de transformar a vida urbana num arremedo da vida em cidades de pequeno porte ou subúrbios. O sentimentalismo suscita atitudes açucaradas, em vez de bom senso.
Esse é o capítulo 6
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Um bairro bem-sucedido é aquele que se mantém razoavelmente em dia com seus problemas, de modo que eles não o destruam. Um bairro malsucedido é aquele que se encontra sobrecarregado de deficiências e problemas e cada vez mais inerte diante deles. Nossas cidades apresentam todos os graus de sucesso e fracasso. Mas nós, norte-americanos, costumamos ser ruins na gestão dos bairros, como se pode constatar, por um lado, no acúmulo de fracassos em nossos vastos bolsões apagados e, por outro, nos Territórios das áreas reurbanizadas.
Está na moda supor que certos referenciais de uma vida digna conseguem criar bairros dignos – escolas, parques, moradias limpas e coisas do gênero. Como a vida seria fácil se isso fosse verdade! Que maravilha poder satisfazer uma sociedade complexa e exigente dando-lhe singelas guloseimas concretas! Na prática, causa e efeito não são assim tão singelos. Tanto que um estudo feito em Pittsburgh, com o intuito de demonstrar a suposta íntima correlação entre moradias melhores e condições sociais mais altas, comparou os índices de delinquência em cortiços com aqueles em novos conjuntos habitacionais e chegou à embaraçosa conclusão de que a delinquência era mais alta nos conjuntos habitacionais em que havia melhorias. Será que isso significa que moradias melhores aumentam a criminalidade? De modo algum. Significa, porém, que outras coisas podem ser mais importantes que a habitação e também que não existe nenhuma relação direta e elementar entre boa moradia e bom comportamento, fato que toda a história da civilização ocidental, todas as obras da nossa literatura e todo o estoque de observações de que dispomos deveriam ter tornado evidente há muito tempo. Um bom abrigo é um bem útil em si enquanto abrigo. Quando, ao contrário, tentamos justificar um bom abrigo com o pretenso argumento de que ele fará milagres sociais e familiares, estamos enganando a nós mesmos. Reinhold Niebuhr denominou essa ilusão de “doutrina da salvação pelos tijolos”.
Acontece o mesmo com as escolas. Não se pode depender das boas escolas, embora elas sejam importantes, para a recuperação de bairros ruins e a criação de bairros bons. Da mesma maneira, um bom prédio escolar não garante uma boa educação. As escolas, como os parques, têm tudo para ser elementos passageiros do bairro (assim como elementos de um plano de ação política mais amplo). Em bairros ruins, as escolas acabam arruinadas, física e socialmente, ao passo que os bairros prósperos aprimoram suas escolas lutando por elas 1.
Da mesma maneira, não podemos concluir que famílias de classe média ou de classe alta possam constituir bons bairros e famílias pobres não consigam fazê-lo. Por exemplo, da pobreza do North End, em Boston, da pobreza da coletividade da orla marítima do West Greenwich Village, da pobreza do distrito do matadouro de Chicago (coincidentemente três áreas declaradas irrecuperáveis pelos urbanistas), surgiram bons bairros – bairros em que os problemas se reduziram com o tempo, ao invés de aumentar. Ao mesmo tempo, da outrora elegante e serena classe alta do magnífico Eutaw Place, em Baltimore, da outrora sólida classe alta do South End de Boston, da área culturalmente privilegiada de Morningside Heights, em Nova York, em quilômetros e mais quilómetros de áreas cinzentas e desvitalizadas de uma classe média respeitável, surgiram bairros ruins, bairros cuja apatia e cujo fracasso aumentaram com o tempo, em vez de diminuir.
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perda de tempo sair à procura de um referencial para o êxito de instalações de alto padrão, ou de coletividades supostamente capazes e livres de problemas, ou de lembranças nostálgicas da vida em cidades de pequeno porte. Isso foge ao cerne da questão, que é o que os bairros fazem – se é que fazem – de útil para as próprias cidades, social e economicamente, e como fazem.
Teremos um elemento concreto para pensar se considerarmos os bairros como prosaicos órgãos autogovernados. Nossos fracassos com os bairros são, em última instância, fracassos da autogestão. E nossos êxitos são êxitos da autogestão. Estou empregando o termo autogestão no sentido amplo, tanto a autogestão informal da coletividade quanto a formal.
As exigências com relação à autogestão e as técnicas para executá-la nas grandes cidades são diferentes daquelas próprias de localidades menores. Existe, por exemplo, o problema dos estranhos. Para pensar nos bairros como órgãos urbanos autogeridos ou dotados de governo próprio, precisamos primeiro refutar algumas ideias ortodoxas mas descabidas acerca dos bairros que talvez se apliquem a comunidades de povoados pequenos, mas não a cidades. Em primeiro lugar, devemos refutar qualquer modelo que encare os bairros como unidades autossuficientes ou introvertidas.
Infelizmente, a teoria urbanística ortodoxa está profundamente comprometida com o modelo de bairros supostamente acolhedores e voltados para si. Na forma original, o modelo consiste numa unidade de vizinhança, constituída por cerca de 7 mil pessoas, que tenha tamanho suficiente para conter uma escola elementar e para manter lojas de conveniência e um centro comunitário. Essa unidade foi ainda imaginada com subdivisões em agrupamentos menores, de um tamanho que atenda à diversão infantil, ao presumível controle sobre as crianças e ao bate-papo das donas de casa. Embora esse “modelo ideal” raramente seja reproduzido à risca, é o ponto de partida para quase todos os projetos de revitalização de bairros, todas as construções de conjuntos residenciais, maior parte do zoneamento moderno e também os trabalhos feitos atualmente pelos estudantes de arquitetura e urbanismo, que vão impor essas adaptações às cidades de amanhã. Em 1959, só na cidade de Nova York mais de meio milhão de pessoas já viviam de acordo com adaptações dessa concepção de bairro planejado. Esse “ideal” de bairro em forma de ilha, voltado para si mesmo, é um fator importante na vida atual.
Para percebermos por que se trata de um “ideal” absurdo e até nocivo às cidades, precisamos reconhecer uma diferença fundamental entre essas invenções enxertadas nas cidades e a vida em cidades de pequeno porte. Em cidades pequenas de 5 mil ou 10 mil habitantes, se você for à rua principal (análoga à infraestrutura comercial implantada ou ao centro comunitário de um bairro planejado), encontrará pessoas que conhece do trabalho ou foram suas colegas de escola, ou com quem você se encontra na igreja, ou que são professoras dos seus filhos, ou lhe prestaram serviços informais, ou que você sabe serem amigas de conhecidos seus, ou que você conhece de nome. Dentro dos limites de uma cidadezinha ou de uma vila, os laços entre os habitantes se cruzam e voltam a se cruzar, o que pode resultar em comunidades fundamentalmente coesas, mesmo em cidades com mais de 7 mil habitantes e, em certa medida, em cidades ainda maiores.
Porém, uma coletividade de 5 mil ou 10 mil moradores de uma metrópole não possui esse mesmo grau natural de inter-relacionamento, a não ser em circunstâncias absolutamente extraordinárias. E nem mesmo o planejamento de bairros, por mais agradável que tente ser, consegue mudar esse fato. Se conseguisse, seria à custa da destruição da cidade, convertendo-a numa porção de cidadezinhas. Assim, o preço da tentativa, sem que ao menos se tenha sucesso nessa meta mal orientada, é a transformação da cidade numa porção de Territórios hostis e desconfiados uns dos outros. Há muitas outras falhas nesse “ideal” de bairro planejado e em suas várias adaptações2.
Ultimamente, alguns urbanistas, especialmente Reginald Isaacs, de Harvard, ousaram questionar se o conceito de bairro em metrópoles tem algum sentido. Isaacs ressalta o fato de que os moradores urbanos têm mobilidade. Eles costumam escolher, em toda a cidade e até fora dela, o trabalho, o dentista, o lazer, amigos, lojas, entretenimento e até mesmo, em certos casos, a escola dos filhos. Os moradores urbanos, diz Isaacs, não se prendem ao provincianismo de um bairro – e por que o fariam? A vantagem das cidades não é justamente a variedade de opções e a fartura de oportunidades?
Essa é de fato a vantagem das cidades. Além do mais, a própria fluência de usos e de escolhas dos moradores urbanos constitui a base que sustenta a maioria das atividades culturais e das empresas especializadas das cidades. Já que estas podem atrair pessoal qualificado, materiais, os fregueses e a clientela desse grande pool, elas têm condições de existir numa gama extraordinária, e não só no centro urbano, mas também em outros distritos que tenham desenvolvido características e especialidades próprias. E, ao se aproveitar dessa maneira do grande pool das cidades, os empreendimentos urbanos, por sua vez, aumentam as opções de emprego, bens, entretenimento, ideias, contatos e serviços para os moradores urbanos.
Sejam os bairros o que forem e seja qual for sua funcionalidade, ou a funcionalidade que sejam levados a adquirir, suas qualidades não podem conflitar com a mobilidade e a fluidez de uso urbano consolidadas, sem enfraquecer economicamente a cidade de que fazem parte. A falta de autonomia tanto econômica quanto social nos bairros é natural e necessária a eles, simplesmente porque eles são integrantes das cidades. Isaacs tem razão ao concluir que a concepção de bairro em metrópoles não tem sentido – se encararmos os bairros como unidades autónomas em qualquer grau significativo, inspirados em bairros de cidades de pequeno porte.
Apesar da extroversão inerente aos bairros, isso não quer dizer obrigatoriamente que os moradores consigam viver bem sem eles como num passe de mágica. Até mesmo o mais citadino dos cidadãos se importa com o ambiente da rua e do distrito em que mora, sejam quais forem suas opções fora deles; e os moradores comuns das cidades dependem bastante de seu bairro na vida cotidiana que levam.
Presumamos (como é sempre o caso) que os vizinhos não tenham nada em comum além do fato de viverem num mesmo espaço geográfico. Ainda assim, se não cuidarem do bairro adequadamente, esse espaço entrará em decadência. Não existe um “eles” incrivelmente onisciente e dinâmico que assuma o comando e se encarregue da autogestão. Os bairros metropolitanos não precisam proporcionar a seus moradores uma imitação da vida das vilas ou das cidades de pequeno porte, e desejar que isso aconteça é tão inútil quanto prejudicial. Mas os bairros precisam prover alguns meios de autogestão civilizada. Esse é o problema.
Considerando os bairros como órgãos autogeridos, só consigo achar produtivos três tipos de bairro: (1) a cidade como um todo; (2) a vizinhança de rua; e (3) distritos extensos, do tamanho de uma subcidade, compostos por 100 mil habitantes ou mais, no caso de cidades maiores.
Cada um desses tipos de bairro tem funções diferentes, mas um complementa o outro de modo complexo. Não se pode dizer que um seja mais importante que os outros. Os três são necessários para a perenidade em qualquer ponto. Mas acho que outros bairros que não esses três acabam se interpondo e dificultando ou impedindo o êxito da autogestão.
O mais óbvio desses três tipos, raramente chamado de bairro, é a cidade como um todo. Não podemos nunca esquecer ou desprezar essa coletividade maior ao pensar nos segmentos menores de uma cidade. É dessa fonte que flui a maior parte do dinheiro público, mesmo que ele provenha, em última instância, do tesouro federal ou estadual. É aí que se toma a maioria das decisões administrativas e políticas, boas ou ruins. É aí que o bem-estar geral entra num dos piores conflitos, aberto ou velado, com os interesses ilegais e outros igualmente destrutivos.
Além disso, encontram-se, nesse mesmo plano, grupos com interesses específicos e grupos de pressão. O bairro da cidade como um todo é o local onde as pessoas que têm interesse específico em teatro ou em música ou em outras formas de arte se encontram e se reúnem, onde quer que morem. É aí que as pessoas dedicadas a profissões ou a negócios específicos ou preocupadas com determinados problemas trocam ideias e às vezes começam a agir. O professor P. Sargant Florence, especialista britânico em economia urbana, escreve: “Segundo minha experiência, sem contar um local específico de intelectuais, como Oxford ou Cambridge, uma cidade de 1 milhão de habitantes deve ser capaz de me proporcionar, digamos, os vinte ou trinta amigos compatíveis comigo de que necessito!” Isso soa um tanto esnobe, sem dúvida, mas o que o professor Florence diz é verdade. Talvez ele goste que seus amigos fiquem sabendo o que ele está querendo dizer. Quando William Kirk, do Núcleo Comunitário Union, e Helen Hall, do Núcleo Comunitário da Rua Henry, bem distantes um do outro em Nova York, reúnem-se com o pessoal da Consumers ‘ Union – revista cuja sede também fica longe –, com pesquisadores da Universidade de Colúmbia e com os curadores de uma fundação para discutir a falência financeira, pessoal e da comunidade, provocada pelos empréstimos de agiotas aos conjuntos habitacionais de baixa renda, sabem o que os outros estão querendo dizer e, além disso, conseguem associar sua forma peculiar de conhecimento a um tipo especial de capital para conhecer o problema e encontrar meios de combatê-lo. Quando minha irmã, Betty, que é dona de casa, participou da elaboração de um plano para a escola pública de Manhattan que um de seus filhos cursa, por meio do qual os pais que sabem o inglês ajudam nas lições de casa as crianças cujos pais não conhecem o idioma, e o plano deu certo, esse conhecimento se infiltrou pelo bairro da cidade como um todo com um interesse específico. Por causa disso, a Betty viu-se uma noite na região da Bedford-Stuyvesant, no Brooklyn, contando a um grupo de dez presidentes de Associações de Pais e Mestres (APMs) do distrito como esse plano funciona e aprendendo com eles coisas novas.
Um dos maiores trunfos de uma cidade, se não o maior, é formar comunidades com interesses comuns. Por outro lado, um dos trunfos necessários aos distritos urbanos é contar com pessoas que tenham acesso a grupos políticos, administrativos e de interesse comum na cidade como um todo.
Na maioria das cidades grandes, nós, norte-americanos, temos certa facilidade para criar bairros úteis que abranjam toda a cidade. As pessoas que possuem interesses similares ou complementares não têm dificuldade em se descobrir umas às outras. Nesse aspecto, normalmente elas têm mais condições de fazê-lo nas grandes cidades (exceto Los Angeles, que é terrível para isso, e Boston, que é patética). Além do mais, como Seymour Freedgood, da revista Fortune, tão bem documentou em The Exploding Metropolis [A metrópole em explosão], os governos das cidades grandes costumam ser competentes e ativos em vários aspectos, mais do que se poderia depreender ao observar os problemas sociais e econômicos dos inúmeros bairros fracassados das mesmas cidades. Seja qual for nossa desastrosa deficiência, dificilmente se trata da mera incapacidade de formar vizinhanças no geral, a partir da cidade como um todo.
Na outra ponta da escala encontram-se as ruas e as minúsculas vizinhanças que elas formam, como, por exemplo, a vizinhança da nossa Rua Hudson.
Nos primeiros capítulos deste livro, insisti bastante nas atribuições da autogestão das ruas: tecer redes de vigilância pública e, assim, proteger os estranhos e também a si próprios; formar redes em escala reduzida na vida cotidiana do povo e, consequentemente, redes de confiança e de controle social; e propiciar a integração das crianças a uma vida urbana razoavelmente responsável e tolerante.
Todavia, as vizinhanças têm ainda outra atribuição vital na autogestão: devem ter meios efetivos de pedir auxílio diante de um problema de grandes proporções que a própria rua não consiga resolver. Às vezes, esse auxílio precisa vir da cidade como um todo, na outra ponta da escala. Esse é um fio da meada que vou deixar solto, mas que gostaria que vocês recordassem.
Todas as atribuições da autogestão das ruas são modestas mas indispensáveis. Apesar das várias experiências, planejadas ou não, não há o que substitua as ruas vivas.
De que tamanho deve ser uma vizinhança para que ela funcione bem? Se atentarmos para as redes de vizinhança bem-sucedidas na vida real, veremos que essa pergunta não tem sentido, porque, onde quer que funcionem bem, as vizinhanças não têm nem começo nem fim que as distinga como unidades separadas. O tamanho difere até para pessoas do mesmo lugar, porque algumas delas vão mais longe, ficam mais tempo na rua ou têm conhecidos que se encontram mais longe que os de outras pessoas. Sem dúvida, grande parte do êxito dessas vizinhanças depende da sua sobreposição e da sua interpenetração para além das esquinas. Essa é uma das maneiras pelas quais elas apresentam a seus frequentadores uma variação econômica e visual. A parte residencial da Park Avenue, de Nova York, parece ser um exemplo extremo de vizinhança monótona, e o seria se constituísse uma faixa isolada de vizinhança de rua. Mas, para um morador da Park Avenue, a vizinhança apenas começa aí; basta sair da avenida e virar a esquina. Ela não é apenas uma faixa, mas integra um conjunto de vizinhanças entrelaçadas de grande diversidade.
Sem dúvida podemos encontrar muitas vizinhanças isoladas com limites definidos. Elas geralmente existem em quadras longas (e daí haver poucas ruas), porque as quadras longas quase sempre tendem ao autoisolamento físico. Não há o que fazer com uma vizinhança nitidamente isolada; o fracasso é uma característica comum a elas. Ao descrever os problemas de uma área de quadras longas, monótonas e isoladas no West Side de Manhattan, o Dr. Dan W. Dodson, do Centro de Estudos de Relações Humanas da Universidade de Nova York, observou: “Cada uma [rua] parece ser um mundo à parte, com uma cultura à parte. Muitos dos entrevistados não tinham ideia do bairro além da rua em que moravam.”
Resumindo a incompetência do local, o Dr. Dodson comentou: “A situação atual da vizinhança indica que os moradores perderam a capacidade de atuar coletivamente, senão já teriam há muito tempo pressionado a prefeitura e as instituições sociais para que resolvessem alguns dos problemas que afetam as condições de vida da comunidade.” Essas duas observações do Dr. Dodson a respeito do isolamento por ruas e da incompetência estão intimamente relacionadas.
As vizinhanças prósperas não são, em resumo, unidades distintas. Formam um contínuo físico, social e econômico – sem dúvida de tamanho reduzido, mas reduzido no sentido de que o comprimento das fibras que constituem uma corda são de tamanho reduzido.
Nos locais em que as ruas possuem estabelecimentos comerciais, vivacidade, usos e atrativos suficientes para cultivar essa continuidade de vida, nós, norte-americanos, mostramo-nos muito capazes de autogerir as vias públicas. É mais comum constatar e comentar-se a existência dessa capacidade nos distritos de população pobre, ou outrora pobre. Mas vizinhanças de rua casuais e boas no que se espera delas são também uma característica das zonas de alta renda que mantêm popularidade constante – em lugar de ser uma moda passageira –, como por exemplo o East Side de Manhattan, das ruas 50 até as 80, e o distrito da Rittenhouse Square, em Filadélfia.
Não resta dúvida de que faltam às nossas cidades ruas preparadas para a vida urbana. Em vez delas, temos extensas áreas afligidas pela Grande Praga da Monotonia. Não obstante, inúmeras ruas desempenham bem suas modestas atribuições e também conquistam a confiança, a não ser que – ou até que – sejam destruídas pelo impacto de problemas muito grandes ou pela falta prolongada de melhorias que só possam provir da cidade como um todo, ou ainda por políticas de planejamento deliberadas, que os moradores não tenham forças para enfrentar.
E chegamos aqui ao terceiro tipo de bairro que serve para a autogestão: o distrito. Neste, penso eu, geralmente somos menos efetivos, e nosso fracasso é mais desastroso. Temos uma profusão de locais chamados distritos. Poucos deles funcionam.
A função principal de um distrito bem-sucedido é servir de mediador entre as vizinhanças que são indispensáveis mas não têm força política, e a cidade como um todo, inerentemente poderosa.
Existe muita ignorância entre os responsáveis pelas cidades que estão no topo. Não há escapatória, pois as grandes cidades são simplesmente grandes e complexas demais para que sejam compreendidas em detalhe de qualquer perspectiva – quer a das altas esferas, quer a de qualquer ser humano. Mesmo assim, o detalhe é fundamental. Os integrantes de um grupo distrital do East Harlem, antes de um encontro marcado com o prefeito e seus secretários, prepararam um documento relatando a devastação provocada no distrito por decisões de fora (a maioria delas bem-intencionada, é claro) e fizeram este comentário: “Devemos salientar que constatamos frequentemente que nós, que moramos e trabalhamos no East Harlem, que temos contato diário com o bairro, o vemos de maneira bem diferente (…) daqueles que apenas passam por ele a caminho do trabalho ou leem a respeito dele nos jornais ou, mais ainda, acreditamos, daqueles que tomam decisões sobre ele em repartições no centro da cidade.” Ouvi quase as mesmas palavras em Boston, Chicago, Cincinnati, St. Louis. É uma queixa que não deixa de se repetir em todas as nossas grandes cidades.
Os distritos precisam ajudar a implantar os recursos típicos da cidade onde eles são mais necessários para os bairros e devem ajudar a traduzir a vivência real dos bairros em políticas e metas para a cidade como um todo. E precisam ajudar a preservar uma região que pode ser utilizada, de maneira civilizada, não só pelos seus moradores como também por outros usuários – trabalhadores, fregueses, visitantes – da cidade inteira.
Para executar essas funções, um distrito competente precisa possuir tamanho suficiente para ter força na vida da cidade como um todo. O bairro “ideal” da teoria urbanística não se presta a esse papel. Um distrito precisa ser suficientemente grande e forte para brigar na prefeitura. Nada mais, nada menos. Claro que brigar na prefeitura não é a única atribuição do distrito ou necessariamente a mais importante. Porém, essa é uma boa definição de tamanho, no tocante à funcionalidade, porque às vezes o distrito tem de fazer exatamente isso e também porque o distrito que não tiver força e vontade para brigar na prefeitura – e ganhar –, quando sua população se sentir muito prejudicada, é bem capaz de não possuir força e vontade para enfrentar outros problemas sérios.
Vamos voltar um instante às vizinhanças de rua e pegar o fio da meada que deixei solto: a incumbência que recai sobre uma vizinhança efetiva de buscar auxílio quando surge um problema muito grande.
Não há desamparo maior que o de uma rua sozinha quando os problemas ultrapassam suas forças. Como exemplo, veja o que aconteceu num caso de tráfico de drogas em uma rua do Upper West Side de Manhattan, em 1955. Essa rua era habitada por moradores que trabalhavam por toda a cidade e tinham conhecidos tanto na rua como fora dela. Na própria rua, levavam uma vida em público razoavelmente ativa, que se concentrava junto à porta das casas, mas não havia comércio no bairro nem figuras públicas constantes. Eles também não tinham relações com outras vizinhanças do distrito; na verdade, a região deles não era um distrito, a não ser no nome.
Quando num dos prédios começou a ser vendida heroína, uma enxurrada de viciados invadiu a rua – não para morar, mas para fazer contatos. Eles precisavam de dinheiro para comprar a droga. Uma das consequências foi uma epidemia de assaltos à mão armada e roubos na rua. As pessoas começaram a ficar com medo de voltar para casa às sextas-feiras com o pagamento no bolso. Às vezes, os moradores se aterrorizavam com gritos lancinantes durante a madrugada. Eles tinham vergonha que seus amigos fossem visitá-los. Alguns dos adolescentes da rua eram viciados, e outros estavam a caminho.
Os moradores, a maioria dos quais conscienciosos e honrados, fizeram o que estava a seu alcance. Chamaram a polícia várias vezes. Algumas pessoas decidiram que o departamento competente a que deveriam recorrer era a Equipe de Narcóticos. Eles contaram aos investigadores onde se vendia heroína, quem a vendia e quando era vendida e em que dias provavelmente se fazia o abastecimento.
Não aconteceu nada – a não ser que as coisas continuaram a piorar.
Não acontece grande coisa quando uma ruazinha desassistida luta sozinha contra um dos maiores problemas de uma cidade grande.
Será que a polícia foi subornada? Como é que se vai saber?
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falta de uma vizinhança no distrito, à falta de conhecimento de outras pessoas que se importassem com o problema desse lugar e pudessem dar mais peso à luta, os moradores foram até onde sabiam ir. Por que eles não chamaram nem sequer o vereador local ou entraram em contato com o diretório político? Ninguém da rua conhecia essas pessoas (um vereador tem cerca de 115 mil eleitores), nem conhecia ninguém que as conhecesse. Resumindo, essa rua simplesmente não tinha relação alguma com a vizinhança do distrito, quanto mais relações produtivas com uma vizinhança efetiva. Os moradores da rua que talvez pudessem tratar do problema mudaram-se ao perceber que a situação era desesperadora. A rua mergulhou em verdadeiro caos e barbárie.
Nova York teve um comissário de polícia competente e diligente durante esses acontecimentos, mas ninguém conseguia chegar até ele. Sem uma compreensão real nas ruas e a pressão dos distritos, até ele estaria em certa medida de mãos atadas. Por causa dessa lacuna, uma grande dose de boa intenção nos altos escalões tem poucos resultados lá embaixo, e vice-versa.
Às vezes a cidade não atua em favor da rua, mas contra ela, e, mais uma vez, se a rua não contar com cidadãos influentes, ficará totalmente indefesa. Recentemente tivemos esse problema na Rua Hudson. Os engenheiros da região administrativa de Manhattan decidiram reduzir nossas calçadas em 35 centímetros. Isso fazia parte de um programa municipal rotineiro e descabido de alargamento do leito das ruas para veículos.
Nós, os moradores, fizemos o que pudemos. O gráfico parou a impressora, retirou dela um trabalho urgente e imprimiu petições de emergência no sábado de manhã, para que as crianças, que estavam de folga da escola, pudessem ajudar a distribuí-las. Os moradores das vizinhanças apanharam as petições e as distribuíram em lugares ainda mais distantes. As duas escolas mantidas pela Igreja Episcopal e pela Igreja Católica fizeram com que seus alunos levassem as petições para casa. Obtivemos cerca de mil assinaturas na nossa rua e nas ruas vizinhas; essas assinaturas representavam provavelmente a maioria dos adultos diretamente atingidos. Muitos comerciantes e moradores escreveram cartas, e um grupo de representantes formou uma delegação para falar com o presidente da região administrativa, o funcionário responsável eleito.
Sozinhos, dificilmente teríamos tido qualquer chance. Nós nos insurgimos contra uma política pública enraizada de tratamento das ruas e nos opúnhamos a uma obra que significaria muito dinheiro para alguém e cujos trâmites já estavam em estágio bem avançado. Soubemos com antecedência do plano de obras por pura sorte. A comunicação pública não havia sido necessária, porque tecnicamente se tratava apenas do recuo do meio-fio.
Primeiramente nos disseram que o plano não seria alterado; a calçada tinha de ser recuada. Precisávamos de mais forças para escudar nosso insignificante protesto. Esse apoio veio do nosso distrito, Greenwich Village. Na verdade, uma das principais intenções das nossas petições, embora não ostensiva, era alardear para todo o distrito que havia surgido uma questão polêmica. As rápidas decisões tomadas pelas organizações do distrito foram mais valiosas para nós do que a expressão da opinião da vizinhança. A pessoa que assumiu nossa representação, Anthony Dapolito, presidente da Associação de Moradores do Greenwich Village, e as pessoas da nossa delegação que mais fizeram peso eram de outras ruas que não a nossa; algumas moravam do outro lado do distrito. Elas fizeram peso exatamente por representar a opinião pública e os formadores de opinião de todo o distrito. Com a ajuda delas, nós vencemos.
Sem contar com tal apoio, a maioria das ruas nem chega a tentar reagir – mesmo que seus problemas tenham origem na prefeitura ou em outros inconvenientes da natureza humana. Ninguém gosta de envolver-se com o que não dá resultado.
A ajuda que obtivemos impõe a algumas pessoas de nossa rua, é claro, a responsabilidade de auxiliar outras ruas ou apoiar causas mais genéricas do distrito quando se fizer necessário. Se descuidarmos disso, talvez não tenhamos ajuda da próxima vez.
Os distritos que conseguem levar a vivência das ruas para os escalões superiores às vezes ajudam a transformá-la em diretrizes municipais. Os exemplos disso são infindáveis, mas este serve como ilustração: neste momento, o município de Nova York está supostamente aprimorando o tratamento dispensado aos viciados em drogas, e simultaneamente a prefeitura está pressionando o governo federal a expandir e reformular sua política e a aumentar o empenho em impedir o contrabando de entorpecentes do exterior. O estudo e a movimentação que ajudaram a impulsionar essas ações não tiveram origem num misterioso “eles”. A primeira iniciativa pública pela reformulação e expansão do tratamento foi fomentada não por autoridades, mas por grupos de pressão de distritos como o East Harlem e o Greenwich Village. A denúncia e a divulgação da vergonha que é o fato de os boletins de detenções estarem forrados de nomes de vítimas, enquanto os traficantes operam às claras e impunemente, partiram desses grupos de pressão, não de autoridades e menos ainda da polícia. Esses grupos de pressão analisaram o problema, têm exigido mudanças e continuarão a fazê-lo, exatamente porque estão em contato direto com casos ocorridos nas ruas vizinhas. A experiência daquela rua solitária do Upper West Side, por outro lado, não tem nada para ensinar a ninguém – a não ser safar-se.
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tentador achar que se pode criar um distrito por meio de uma federação de bairros distintos. O Lower East Side, em Nova York, está atualmente tentando formar um distrito de verdade, nesses moldes, e para isso tem recebido altas somas em doações filantrópicas. O sistema federativo formal parece funcionar muito bem com metas com as quais praticamente todos concordam, como exigir um novo hospital. Mas muitas das questões vitais da vida urbana local são controvertidas. No Lower East Side, por exemplo, a estrutura organizacional federativa do distrito inclui, neste momento, pessoas que tentam impedir que tratores ponham abaixo suas casas e também abrange os construtores de conjuntos habitacionais cooperativados e vários outros grupos de interesse que querem que o governo utilize seu poder de condenar uma área com o fim de despejar esses mesmos moradores. Trata-se de conflitos de interesses genuínos – neste caso, o antiquíssimo conflito entre a caça e o caçador. As pessoas que tentam preservar-se empenham seus esforços, em vão, tentando que reivindicações e cartas de petição sejam aprovadas por conselhos diretores compostos por seus principais adversários!
Ambas as facções da renhida disputa por questões locais importantes precisam mostrar-se com toda a força que conseguirem reunir em todo o distrito (menos que isso é inútil) para mexer com a política municipal que eles pretendem alterar ou com as decisões que pretendem influenciar. Têm de lutar por isso entre si e com as autoridades, no âmbito em que as decisões são efetivamente tomadas, porque é isso que importa para que vençam. Qualquer coisa que leve os competidores a fracionar seu poder ou diluir sua força, recorrendo a moções de “tomada de decisão” envolvendo burocracia e comissões sem poder decisório no governo, destrói a vida política, a eficácia dos cidadãos e a autogestão. Passa a ser um arremedo de autogestão, não uma autogestão verdadeira.
Quando, por exemplo, o Greenwich Village brigou para evitar que seu parque, a Washington Square, fosse cortado por uma via expressa, a maioria era esmagadoramente contra. Mas não era uma opinião unânime. Entre os indivíduos favoráveis à via expressa estavam pessoas eminentes, com posição de liderança em áreas menores do distrito. Naturalmente, elas tentaram restringir a luta ao âmbito local, e o governo municipal tentou o mesmo. A opinião da maioria teria se esvaziado com essa tática, em vez de prevalecer. Na verdade, ela vinha sendo esvaziada até que a verdade foi trazida à tona por Raymond Rubinow, que trabalhava no distrito mas não morava lá. Rubinow ajudou a constituir um Comitê Conjunto de Emergência, uma verdadeira organização distrital que se sobrepunha a outras formas de organização. Os distritos competentes funcionam como entidades separadas, e os cidadãos que estejam de acordo sobre questões controversas devem principalmente atuar de modo coletivo no âmbito distrital, do contrário nada conseguem. Os distritos não são um conjunto de principados insignificantes que atuam federativamente. Quando funcionam, o fazem como unidades dotadas de poder e opinião e com tamanho suficiente para se fazerem valer.
Nossas cidades têm muitos bairros parecidos com ilhas, pequenos demais para funcionar como distritos, e entre eles estão não só os bairros planejados impostos pelo urbanismo, mas também vários bairros espontâneos. Essas unidades espontâneas e diminutas surgiram ao longo do tempo e quase sempre são encraves de grupos étnicos bem definidos. Elas em geral desempenham bem e energicamente as funções que as ruas têm num bairro e, assim, mantêm surpreendentemente sob controle os problemas sociais e as mazelas resultantes. Porém, esses mesmos pequenos bairros também se veem desamparados, da mesma forma que as ruas, com relação aos problemas e às mazelas vindas de fora. Não possuem infraestrutura pública e de serviços porque não dispõem de poder para obtê-la. São impotentes diante da morte lenta imposta pelos credores hipotecários por meio da concessão e da recusa de empréstimos, um problema de solução extremamente difícil mesmo quando o distrito tem muita força. Se entrarem em conflito com os moradores de um bairro vizinho, tanto eles como os vizinhos não conseguirão ajuda para melhorar suas relações. Na verdade, o isolamento faz com que essas relações se deteriorem ainda mais.
Sem dúvida, às vezes um bairro muito pequeno para funcionar como um distrito tem acesso às vantagens do poder por ter como morador um cidadão extremamente influente ou uma instituição importante. Mas os cidadãos de um bairro desses pagarão pela dádiva “gratuita” de poder no dia em que seus interesses conflitarem com os do Papai Mandachuva ou da Mamãe Instituição. Eles não têm poder para derrotar Papai nos órgãos públicos, lá nas altas esferas onde as decisões são tomadas, e portanto são também impotentes para dizer-lhe o que querem ou influenciá-lo. Os cidadãos de bairros que incluem uma universidade, por exemplo, se encontram sempre nessa situação sem saída.
A possibilidade de um distrito com potencial tornar-se competente e capaz de se autogerir democraticamente depende muito de conseguir ou não vencer o isolamento de seus pequenos bairros. Trata-se principalmente de um problema político e social do distrito e dos competidores que ele contém, mas é também um problema físico. Planejar deliberada e concretamente, segundo a premissa de que bairros superados e menores que um distrito são um ideal desejável, significa subverter a autogestão. Motivações sentimentais ou paternalistas não ajudam em nada. Quando o isolamento físico é induzido por diferenças sociais gritantes, como ocorre em conjuntos residenciais cujos moradores são rotulados pelo preço, a política administrativa é tremendamente perniciosa para a autogestão e o autogoverno efetivo nas cidades.
Não é descoberta minha o valor dos distritos urbanos que ostentam um poder real (no qual, porém, as vizinhanças não sejam unidades infinitesimais desconexas). Esse valor tem sido redescoberto e comprovado empiricamente vezes sem fim. Quase todas as grandes cidades possuem pelo menos um desses distritos efetivos. Muitas outras áreas lutam esporadicamente para funcionar como um distrito em épocas de crise.
Não surpreende que os distritos razoavelmente prósperos acumulem com o tempo um poder político considerável. Vez ou outra conseguem produzir indivíduos capazes de atuar simultaneamente na vizinhança próxima e no distrito inteiro e também no distrito e no bairro da cidade como um todo.
A superação do nosso desastroso fracasso em criar distritos funcionais depende em grande parte de mudanças na administração municipal, assunto de que não precisamos tratar no momento. Todavia, precisamos, entre outras coisas, erradicar as ideias de planejamento convencionais a respeito dos bairros. O bairro “ideal” da teoria do planejamento e do zoneamento, grande demais para possuir a mesma eficiência e o mesmo significado de uma vizinhança, é ao mesmo tempo pequeno demais para funcionar como um distrito. Não serve para coisa alguma. Não serve nem como ponto de partida. Assim como a crença na sangria medicinal, foi uma escolha errada na busca da compreensão.
Se as únicas formas de bairro que demonstram ter funcionalidade proveitosa para a autogestão na vida real são a cidade como um todo, as ruas e os distritos, então o planejamento físico de bairros eficientes deve almejar as seguintes metas:
Primeira, fomentar ruas vivas e atraentes.
Segunda, fazer com que o tecido dessas ruas forme uma malha o mais contínua possível por todo um distrito que possua o tamanho e o poder necessário para constituir uma subcidade em potencial.
Terceira, fazer com que parques, praças e edifícios públicos integrem esse tecido de ruas; utilizá-los para intensificar e alinhavar a complexidade e a multiplicidade de usos desse tecido. Eles não devem ser usados para isolar usos diferentes ou isolar subdistritos.
Quarta, enfatizar a identidade funcional de áreas suficientemente extensas para funcionar como distritos.
Se as três primeiras metas forem atingidas, a quarta o será naturalmente. Veja por quê: poucas pessoas, a menos que vivam debruçadas sobre mapas, conseguem identificar-se com uma abstração chamada distrito ou preocupar-se com ela. A maioria identifica-se com um lugar da cidade porque o utiliza e passa a conhecê-lo quase intimamente. Nós nos movimentamos por ele com os pés e acabamos dependendo dele. O único motivo para as pessoas fazerem isso é se sentirem atraídas por particularidades das redondezas que se mostram úteis, interessantes e convenientes.
Quase ninguém vai espontaneamente de um lugar sem atrativos para outro, idêntico, mesmo que o esforço físico seja pequeno3.
As diferenças, não as cópias, propiciam a interação de usos e, assim, a identificação das pessoas com uma área maior que a da malha de ruas vizinhas. A monotonia é o oposto da interação de usos e, portanto, da unidade funcional. Da mesma maneira que ocorre com o Território, planejado ou espontâneo, ninguém de fora consegue identificar-se naturalmente com ele ou com o que ele contém.
Os centros de atividades nascem em distritos vivos e diversificados, do mesmo modo como surgem, em escala menor, em parques, e tais centros favorecem a identidade do distrito se também contiverem um ponto de referência que represente simbolicamente o lugar e, em certo sentido, o distrito. Porém, os centros não podem assumir sozinhos a responsabilidade pela identidade do distrito; é preciso que estabelecimentos comerciais e culturais diversos e paisagens diferentes também despontem por toda parte. Em meio a esse tecido, os obstáculos físicos, como grandes artérias de tráfego, parques muito extensos, conjuntos institucionais enormes, são funcionalmente ruins porque impedem a interação de usos.
Em termos absolutos, qual deve ser o tamanho de um distrito próspero? Dei uma definição funcional de tamanho: suficientemente grande para brigar na prefeitura, mas não tão grande a ponto de seus bairros não conseguirem atrair a atenção e ter vez.
Em termos absolutos, o tamanho difere de cidade para cidade, dependendo em parte do tamanho da cidade como um todo. Em Boston, quando o North End tinha uma população que superava 30 mil habitantes, ele tinha força como distrito. Hoje sua população é cerca de metade daquela, em parte devido ao processo salutar de reduzir o número de pessoas por moradia com a recuperação dos cortiços e, em parte, devido ao processo nada salutar de ter sido implacavelmente seccionado por uma nova via expressa. Embora ainda seja unido, o North End perdeu boa parte de seu poder como distrito. Numa cidade como Boston, Pittsburgh ou talvez até mesmo Filadélfia, 30 mil pessoas são suficientes para constituir um distrito. Em Nova York ou Chicago, no entanto, um distrito com apenas 30 mil habitantes não significa nada. O distrito mais efetivo de Chicago, o Back-of-the-Yards, abriga cerca de 100 mil pessoas, segundo o diretor do conselho distrital, e sua população tem aumentado. Em Nova York, o Greenwich Village inclui-se entre os menores distritos efetivos, mas é viável porque consegue compensar o tamanho com outras vantagens. Abriga aproximadamente 80 mil moradores, além de cerca de 125 mil trabalhadores (talvez um sexto deles seja de moradores). O East Harlem e o Lower East Side de Nova York, ambos lutando para constituir distritos efetivos, têm, cada um, 200 mil moradores, e não podem abrir mão deles.
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claro que outras características que não o tamanho da população têm influência no sucesso – principalmente boa comunicação e estado de espírito favorável. Mas o tamanho da população é crucial porque representa votos, ainda que na maioria das vezes só indiretamente. Existem apenas dois poderes públicos máximos que dão feição a uma cidade e a administram: votos e controle do dinheiro. Para soar mais simpático, podemos chamá-los de “opinião pública” e “gastos públicos”, mas continuam sendo votos e dinheiro. Um distrito efetivo – e, por meio dele, os bairros que o constituem – possui um desses poderes: o poder dos votos. Com isso, e só isso, ele pode influenciar o poder que será exercido sobre ele, para o bem ou para o mal, através do dinheiro público.
Robert Moses, cujo talento para realizar coisas consiste principalmente na compreensão desse fato, transformou em arte o controle do dinheiro público para ficar acima daqueles em quem os eleitores votam e de quem dependem para representá-los em seus interesses em geral conflitantes. Obviamente essa é, sob outro prisma, a velha e triste história dos governos democráticos. A arte de contrariar o poder dos votos com o poder do dinheiro pode ser praticada com a mesma eficiência tanto por administradores públicos honrados como por representantes desonestos com interesses estritamente particulares. De qualquer modo, o aliciamento e a corrupção dos eleitos é mais fácil quando o eleitorado está fragmentado em nichos de poder ineficientes.
Quanto aos distritos maiores, não conheço sequer um que tenha mais de 200 mil habitantes e funcione como um distrito. Em todos os casos, a área geográfica impõe um limite populacional empírico. Na realidade, o tamanho máximo de um distrito efetivo que surgiu naturalmente parece
ficar em torno de seis quilômetros quadrados4. Isso talvez ocorra porque uma área maior é desvantajosa para a necessária interação de usos e a identidade funcional que fundamentam a identidade política do distrito. Numa cidade muito grande deve, portanto, haver alta densidade demográfica para que surjam distritos efetivos; do contrário, o poder político necessário nunca se harmonizará com uma identidade geográfica viável.
Esse aspecto da área geográfica não significa que se possa mapear uma cidade com seções de cerca de 2,5 quilômetros quadrados, cada seção definida por fronteiras, e dar vida a distritos. Não são as fronteiras que fazem um distrito, mas a interação de usos e a vida. A razão de considerar a dimensão física e os limites de um distrito é esta: os elementos, naturais ou criados pelo homem, que constituem barreiras físicas para a interação de usos natural, devem estar em algum lugar. É melhor que eles se encontrem nos limites de áreas suficientemente extensas para funcionar como distritos do que interrompendo a continuidade de distritos que de outro modo seriam viáveis. A face verdadeira de um distrito está no que ele é por dentro, na continuidade e na interpenetração de áreas internas que lhe dão funcionalidade, não no modo como termina ou na aparência que tem numa vista aérea. Na verdade, os limites de vários distritos urbanos bastante atraentes expandem-se naturalmente, a menos que barreiras físicas os impeçam. Um distrito demasiadamente delimitado corre o risco de afastar visitantes de outros locais da cidade que trariam estímulo financeiro.
O planejamento de bairros, definidos principalmente de acordo com seu tecido, com a vida e a interação de usos que geram, em vez de definidos por fronteiras formais, obviamente opõe-se às concepções do planejamento ortodoxo. A diferença está em lidar com organismos vivos e complexos, capazes de definir seu próprio destino, e lidar com uma comunidade fixa e inerte, meramente capaz apenas de proteger (se tanto) o que lhe foi outorgado.
Ao abordar a necessidade de haver distritos, não pretendo dar a impressão de que um distrito efetivo seja autossuficiente econômica, política ou socialmente. Claro que não é nem pode ser, da mesma forma que uma rua. E os distritos também não podem ser cópias uns dos outros; são extremamente diferentes, e devem ser. Uma cidade não é um conjunto de cidadezinhas repetitivas. Um distrito atraente tem características próprias e especialidades próprias. Atrai pessoas de fora (possui uma pequena variedade econômica realmente urbana, a não ser em alguns casos), e sua própria população sai dele.
Nem é necessário que um distrito seja autossuficiente. No Back-of-the-Yards, em Chicago, a maioria dos trabalhadores costumava trabalhar, até a década de 40, nos matadouros do distrito. Isso influenciou a formação do distrito, porque sua organização resultou da organização sindical. Mas esses moradores e seus filhos, quando se emanciparam do trabalho nos matadouros, assimilaram o trabalho e a vida da cidade grande. A maioria trabalha atualmente fora do distrito, menos os adolescentes, que desempenham pequenas tarefas depois do período escolar. Essa mudança não enfraqueceu o distrito; no mesmo período, o distrito fortaleceu-se.
O fator construtivo que atuou aí simultaneamente foi o tempo. Nas cidades, o tempo substitui a autossuficiência. O passar do tempo é indispensável nas cidades.
As inter-relações que permitem o funcionamento de um distrito como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas. Consistem em relacionamentos vivos entre pessoas específicas, muitas delas sem nada em comum a não ser o fato de utilizarem o mesmo espaço geográfico.
Os primeiros relacionamentos que se formam em áreas urbanas, desde que haja uma estabilidade populacional nos bairros, são os que ocorrem na vizinhança e entre pessoas que têm alguma coisa em comum e integram instituições – igrejas, APMs, associações de negócios, diretórios políticos, ligas cívicas, comitês para angariar recursos para campanhas de saúde ou outras causas públicas, os naturais de tal e tal vila (associações hoje comuns entre porto-riquenhos, como já foram entre os italianos), associações de proprietários, sociedades de amigos do bairro, grupos contra injustiças e assim por diante, ad infinitum.
A profusão de organizações, na maioria pequenas, existente em quase todas as zonas relativamente estáveis de uma cidade grande, deixa qualquer pessoa tonta. Goldie Hoffman, uma das executivas de um departamento de reurbanização de Filadélfia, decidiu fazer um levantamento das eventuais organizações e instituições existentes numa pequena área lúgubre da cidade com cerca de 10 mil habitantes, designada para revitalização. Para surpresa geral, encontrou dezenove. As organizações pequenas e as organizações com fins específicos crescem nas cidades como as folhas de uma árvore e são, à sua maneira, uma manifestação impressionante de persistência e obstinação da vida.
Contudo, a etapa crucial para a formação de um distrito efetivo vai muito além disso. Deve desenvolver-se um conjunto diferente de inter-relações; são as relações ativas entre pessoas, geralmente líderes, que ampliam sua vida pública local para além da vizinhança e de organizações ou instituições específicas e proporcionam relações com pessoas cujas raízes e vivências encontram-se, por assim dizer, em freguesias inteiramente diferentes. Nas cidades, esses relacionamentos-ponte são mais fortuitos do que as ligações-ponte análogas, quase impostas, entre grupos de interesses pequenos e distintos de comunidades autossuficientes. Talvez por estarmos bem mais avançados na formação de bairros bem situados do que na formação de distritos, as relações entre distritos às vezes surgem casualmente entre pessoas de determinado distrito que se encontram num bairro que tem um atrativo específico e levam tal relacionamento para seu distrito. Muitas relações entre distritos de Nova York, por exemplo, têm início dessa maneira.
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necessário um número surpreendentemente baixo de pessoas que estabeleçam ligação, em comparação com a população total, para consolidar o distrito como uma Entidade real. Bastam cerca de cem pessoas numa população mil vezes maior. Mas essas pessoas precisam dispor de tempo para se descobrir em umas às outras, para investir em colaboração proveitosa – e também para criar raízes nos diversos bairros menores locais ou de interesse específico.
Quando minha irmã e eu chegamos a Nova York, vindas de uma cidade pequena, nos divertíamos com um jogo que chamamos de Mensagens. Acho que estávamos com isso tentando, vagamente, tomar pulso no mundo enorme, estonteante, em que entramos ao sair de nosso casulo. O jogo consistia em escolher duas pessoas inteiramente díspares – como um caçador de cabeças das Ilhas Salomão e um sapateiro de Rock Island, Illinois – e fingir que um tinha de transmitir uma mensagem ao outro boca a boca; então, em silêncio, cada uma de nós imaginava uma corrente de pessoas plausível, ou pelo menos possível, que faria a mensagem seguir adiante. Ganhava quem conseguisse fazer a corrente de mensageiros mais curta e plausível. O caçador de cabeças falava com o chefe de sua tribo, que falava com o mercador que fora comprar polpa de coco, o qual falava com o patrulheiro australiano quando este aparecesse, que falava com o sujeito que sairia de folga para Melbourne etc. Do outro lado da corrente, o sapateiro recebia a mensagem do padre, que a recebera do prefeito, que a recebera do senador do Estado, que a recebera do governador etc. Não demorou para termos uma série desses mensageiros “domésticos” para quase qualquer pessoa que pudéssemos imaginar, mas nós nos enrolávamos no meio das correntes muito longas, até que a Sra. Roosevelt veio trabalhar em casa. De repente, a Sra. Roosevelt fez com que fosse possível pular vários elos intermediários. Ela conhecia as pessoas mais improváveis. O mundo encolheu a olhos vistos. Encolheu tanto que acabou com nosso jogo, que ficou muito rápido e sem graça.
Os distritos precisam ter uma pequena cota de senhoras Roosevelts – pessoas que conheçam outras, bem diferentes, e portanto eliminem a necessidade de correntes de comunicação longas (que, na realidade, não existiriam).
Normalmente os diretores de associações comunitárias são o ponto de partida dessa rede de ligações do distrito, mas eles só as iniciam e tentam encontrar maneiras viáveis de ampliá-las; sozinhos, não dão conta de tudo. Esses laços necessitam do aumento da confiança, da ampliação de uma cooperação que possa ser, ao menos a princípio, casual e experimental; e necessitam de pessoas que tenham considerável autoconfiança ou suficiente grau de preocupação com os problemas públicos locais que garantam sua autoconfiança. No East Harlem, onde se está formando de novo um distrito efetivo a despeito das adversidades, após uma desagregação terrível e a mudança da população, cinquenta e duas entidades participaram em 1960 de uma reunião para transmitir ao prefeito e a catorze de seus secretários as reivindicações do distrito. Entre as entidades havia APMs, igrejas, grupos comunitários e de assistência social, ligas cívicas, associações de locatários, associações comerciais, diretórios políticos e representantes locais do Congresso, da Assembleia e da Câmara Municipal. Cinquenta e oito pessoas foram incumbidas especificamente de marcar a reunião e elaborar as diretrizes; havia entre elas pessoas com todo tipo de qualificação e ocupação e origens variadas – negros, italianos, porto-riquenhos e outros desconhecidos. Isso demonstra a existência de muitas ligações no distrito. Foram necessários vários anos e muita habilidade de uma meia dúzia de pessoas para chegar a uma rede desse porte, e o processo está só começando a ter sucesso.
Assim que consiga firmar-se no distrito, uma rede de ligações desse tipo, boa e forte, poderá expandir-se relativamente rápido e assumir qualquer outro feitio. Às vezes, um indício de que isso está acontecendo é o crescimento de um novo tipo de organização que abranja quase todo o distrito mas tenha caráter temporário, constituída especificamente com fins ad hoc5. Porém, para ir adiante, a rede do distrito precisa atender a três requisitos: um ponto de partida; um espaço físico com número suficiente de pessoas identificadas como frequentadores; e tempo.
As pessoas que estabelecem as ligações, assim como aquelas que formam elos menores nas ruas e organizações de interesse específico, não são de forma alguma os índices estatísticos que supostamente representam pessoas nos projetos urbanísticos e habitacionais. Pessoas-índice são uma fantasia por várias razões, uma das quais é elas serem encaradas como sempre substituíveis. As pessoas de carne e osso são únicas; investem muitos anos em relacionamentos significativos com outras pessoas únicas, e são, no mínimo, insubstituíveis. Desfeitos seus relacionamentos, destrói-se sua condição de seres sociais verdadeiros – às vezes por pouco tempo, às vezes para sempre6.
Se muitos relacionamentos que levaram anos para se desenvolver forem rompidos de repente, pode ocorrer todo tipo de estrago nos bairros – um estrago, uma instabilidade e uma impotência tais que às vezes parece que o tempo nunca mais irá recuperar seu ritmo.
Harrison Salisbury, numa série de artigos no New York Times, “The Shook-Up Generation” [A geração perturbada], captou bem esse aspecto vital dos relacionamentos urbanos e seu rompimento.
“Até mesmo um gueto [ele cita a declaração de um pastor], depois de anos nessa condição, constrói uma estrutura social, que gera uma estabilidade maior, mais lideranças, mais grupos para ajudar a solucionar os problemas públicos.”
Mas [prossegue Salisbury], quando se inicia o despejo dos cortiços em determinada área, ele não só destrói casas malcuidadas; ele desenraíza os moradores. Desfaz igrejas. Arruina os comerciantes. Transfere o advogado do bairro para um escritório novo no centro e desfigura irremediavelmente a malha fechada das amizades na comunidade e das relações entre grupos.
Ele arranca os antigos moradores de seu apartamento deteriorado ou de sua casa modesta e os obriga a encontrar um lugar novo e desconhecido. E ele despeja em outro bairro centenas, milhares de rostos novos (…).
Os programas de revitalização, que buscam principalmente preservar edifícios e ocasionalmente ajudar algumas pessoas mas espalham o restante dos moradores, têm praticamente o mesmo efeito – assim como os empreendimentos concentrados da iniciativa privada, que lucram rapidamente com a valorização criada pela estabilidade de determinado bairro. Cerca de 15 mil famílias foram retiradas de Yorkville, em Nova York, entre 1951 e 1960, por meio daquele expediente; virtualmente todas saíram a contragosto. No Greenwich Village está acontecendo a mesma coisa. Sem dúvida, é um milagre não que nossas cidades tenham poucos distritos, mas que eles funcionem. Em primeiro lugar, há relativamente pouco espaço urbano hoje em dia adequado – felizmente – para a formação de distritos com interação de usos e identidade satisfatórias. Enquanto isso, distritos incipientes ou ligeiramente instáveis estão sempre sendo seccionados, subdivididos ou convulsionados por políticas urbanas equivocadas. Os distritos que são suficientemente eficientes para se defender de uma ruptura intencional podem acabar esmagados em meio a uma “corrida do ouro” inesperada, urdida por aqueles que aspiram a um quinhão desses raros tesouros sociais.
Não há dúvida de que um bom bairro é capaz de absorver novos habitantes, tanto moradores por livre escolha quanto imigrantes que lá se instalem por conveniência, e também é capaz de resguardar uma população transitória considerável. Mas esses progressos e essas mudanças precisam ser gradativos. Para a autogestão de um lugar funcionar, acima de qualquer flutuação da população deve haver a permanência das pessoas que forjaram a rede de relações do bairro. Essas redes são o capital social urbano insubstituível. Quando se perde esse capital, pelo motivo que for, a renda gerada por ele desaparece e não volta senão quando se acumular, lenta e ocasionalmente, um novo capital.
Certos analistas da vida urbana, ao notar que os bairros sólidos são com frequência constituídos de grupos étnicos – principalmente colônias de italianos, poloneses, judeus ou irlandeses –, sugeriram ser necessária uma base étnica coesa para que um bairro funcione como uma unidade social. Na verdade, isso quer dizer que apenas os “meio americanos” são capazes de promover a autogestão nas metrópoles. Para mim, isso é um absurdo.
Em primeiro lugar, esses grupos coesos devido à origem étnica nem sempre são tão coesos como parecem para quem olha de fora. Citando outra vez o Back-of-the-Yards como exemplo, a espinha dorsal de sua população é principalmente centro-europeia, mas é formada por todo tipo de centro-europeus. O bairro tem, por exemplo, literalmente dúzias de igrejas nacionais. A animosidade e a rivalidade tradicionais entre esses grupos foram uma desvantagem grave. Os três principais setores do Greenwich Village derivam de uma colônia italiana, uma colônia irlandesa e da comunidade de patrícios seguidores de Henry James. A coesão étnica pode ter influenciado a formação desses setores, mas não ajudou em nada na consolidação das inter-relações distritais – trabalho iniciado há muitos anos pela notável Mary K. Simkhovich, diretora de associação comunitária. Hoje, muitas das ruas dessas antigas comunidades étnicas já assimilaram uma fantástica variedade de etnias do mundo inteiro. Também assimilaram uma enorme profusão de profissionais de classe média e suas famílias, que se dão muito bem com a vida das ruas e do distrito, apesar do mito do urbanismo de que tais pessoas precisam da proteção de “ilhas de partilha” pseudossuburbana. Algumas das ruas que funcionavam melhor no Lower East Side (antes que fossem riscadas do mapa) eram chamadas genericamente de “judias”, mas as pessoas que realmente faziam parte da vizinhança tinham mais de quarenta origens étnicas diferentes. Um dos bairros mais prósperos de Nova York, com uma comunicação interna maravilhosa, é o East Side da faixa central de Manhattan, constituído predominantemente por pessoas de alta renda, que absolutamente não podem ser qualificadas de outra forma que não norte-americanas.
Em segundo lugar, onde quer que se estabeleçam bairros etnicamente coesos e estáveis, eles possuem outra característica além da identidade étnica: abrigam muitos indivíduos que se recusam a sair de lá. Em minha opinião, mais do que a mera identidade étnica, esse é o fator relevante. Normalmente são necessários muitos anos depois de esses grupos terem se estabelecido para que o tempo aja, e os habitantes constituam um bairro estável e efetivo.
Aqui há um paradoxo aparente: para manter num bairro um número suficiente de pessoas que não saiam de lá, a cidade precisa ter a mesma fluência e mobilidade de usos que Reginald Isaacs, citado neste capítulo, observou ao especular se os bairros poderiam representar algo relevante para as cidades.
De tempo em tempo, muitas pessoas trocam de emprego ou de local de trabalho, mudam ou ampliam suas amizades e seus interesses, sua família muda de tamanho, sua renda aumenta ou diminui, ou até muitos de seus gostos se alteram. Resumindo, elas vivem, em vez de simplesmente existirem. Se elas vivem em distritos diversificados e não monótonos – particularmente em distritos onde muitos detalhes físicos podem ser constantemente acomodados – e se gostam do lugar, elas podem lá permanecer a despeito de mudanças locais ou da natureza de seus outros objetivos e interesses. Ao contrário das pessoas que precisam se mudar de um subúrbio de classe média baixa para outro de média média e para outro de média alta à medida que sua renda e suas atividades de lazer se modificam (ou então serem vistos como excêntricas), ou de pessoas de uma cidadezinha que precisam se mudar para uma cidade maior ou para uma metrópole em busca de novas oportunidades, os moradores urbanos não precisam levantar acampamento por tais motivos.
O conjunto de oportunidades de todo tipo existente nas cidades, e a espontaneidade com que essas oportunidades e opções podem ser usadas são um trunfo – não uma desvantagem – para encorajar a estabilidade do bairro.
Contudo, esse trunfo precisa ser capitalizado. Ele é desperdiçado nos lugares em que a mesmice prejudica os distritos, servindo, portanto, somente a uma faixa estreita de renda, gostos e circunstâncias familiares. Os recursos que o bairro oferece para pessoas-índice imutáveis, sem corpo, são recursos para a instabilidade. As pessoas que se encontram nele e são dados estatísticos podem permanecer as mesmas. Mas não as pessoas que se encontram nele e são pessoas. Tais lugares são eternos locais de passagem.
Na primeira parte deste livro, que termina aqui, enfatizei as vantagens e os pontos fortes peculiares às cidades grandes e também suas fraquezas. As cidades, como qualquer outra coisa, só têm êxito se tirarem o máximo proveito de suas vantagens. Tentei destacar os tipos de lugares das cidades que conseguem fazê-lo e o modo como funcionam. Minha ideia, no entanto, não é que devamos tentar reproduzir, rotineira e superficialmente, as ruas e os distritos que demonstram ter força e êxito como nichos da vida urbana. Isso seria impossível e poderia parecer um exercício de saudosismo arquitetônico. Além do mais, até mesmo as melhores ruas e distritos comportam melhorias, especialmente quanto à comodidade.
Porém, se compreendermos os princípios que fundamentam o comportamento das cidades, poderemos aproveitar-nos de vantagens e pontos fortes potenciais, em vez de atuarmos contrariamente a eles. Primeiro precisamos definir que resultados genéricos desejamos – o que saberemos ao descobrir como transcorre a vida na cidade. Precisamos estar convencidos, por exemplo, de que queremos ruas e outros espaços públicos vivos e bem utilizados e por que os queremos. Mas, embora esse seja um primeiro passo, ele não é suficiente. O próximo passo é examinar o funcionamento urbano em outro nível: o funcionamento econômico que produz essas ruas e esses distritos cheios de vida para os frequentadores das cidades.
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A analogia da autora faz mais sentido em inglês, devido à etimologia da palavra vizinhança, em inglês neighborhood (“congregação” de vizinhos) e ao sentimento de amizade e camaradagem que vizinhos e conhecidos demonstram, especialmente em dias comemorativos como o dos Namorados, quando trocam cartões bem-humorados, jocosos ou sentimentais. (N. do T.)
1. No Upper West Side de Manhattan, uma zona bastante degradada, onde a desintegração social foi agravada por demolições insensatas, pela construção de conjuntos habitacionais e pelo deslocamento forçado de pessoas, o índice de transferência de alunos nas escolas foi superior a 50 por cento em 1959-60. Em 16 escolas, atingiu a média de 92 por cento. É absurdo pensar que, sejam quais forem as iniciativas, governamentais ou privadas, até mesmo uma escola mediana possa subsistir num bairro a tal ponto instável. É impossível haver boas escolas em qualquer bairro instável com alto índice de transferência de alunos, e aí se incluem os bairros instáveis que também dispõem de boas moradias.
2. Até mesmo a velha justificativa para assentar uma população ideal de cerca de 7 mil pessoas – suficiente para ocupar uma escola elementar – revela-se absurda assim que aplicada a metrópoles, como podemos concluir fazendo-nos uma pergunta simples: que escola?
Em muitas cidades dos Estados Unidos, o número de matrículas em escolas mantidas por igrejas é igual ou até maior do que o de escolas públicas. Isso significaria que deveria haver duas escolas como elemento de coesão da comunidade ou que a comunidade deveria ser duas vezes maior? Ou o número de moradores está correto e as escolas é que deveriam ter a metade do tamanho? E por que uma escola elementar? Se a escola deve ser o padrão de proporcionalidade, por que não a escola de ensino médio, instituição normalmente muito mais problemática nas nossas cidades que a escola fundamental? Nunca se faz a pergunta “Que escola?” porque o plano visionário não se baseia nem na realidade das escolas nem em nenhuma outra. A escola é uma desculpa plausível e geralmente abstraía para definir algum tamanho para as cidades originadas em sonhos sobre uma cidade imaginária. Ela é necessária como referência, para evitar um caos intelectual entre os projetistas, mas não tem nenhuma outra justificativa. O modelo das Cidades-Jardim de Ebenezer Howard é, sem dúvida, o antecessor desse conceito, mas sua perenidade advém da necessidade de preencher um vazio intelectual.
3. Descobriu-se nas Jefferson Houses, no East Harlem, que muitas das pessoas que moraram nesse conjunto residencial durante quatro anos nunca haviam posto os olhos no centro comunitário, que fica num lado morto do projeto (morto no sentido de que logo depois não existe vida urbana, só parque). As pessoas de outros locais do conjunto não tinham um motivo plausível para ir até lá e tinham todos os motivos plausíveis para não ir. Lá, tudo se mostrava absolutamente igual. Dora Tannenbaum, diretora da Associação do Núcleo Comunitário da Rua Grand, no Lower East Side, comenta sobre os moradores de outros conjuntos de edifícios – de um conjunto residencial vizinho: “Não passa pela cabeça dessas pessoas que elas tenham alguma coisa em comum. Elas se comportam como se as outras partes do conjunto estivessem em outro planeta.” Visualmente, esses conjuntos são uma unidade; funcionalmente, não. As aparências enganam.
4. O Back-of-the-Yards de Chicago é a única exceção à regra que conheço. É uma exceção que talvez tenha implicações práticas em certos casos, que não vêm ao caso aqui, mas que serão abordadas mais adiante neste livro como um assunto administrativo.
5. No Greenwich Village, elas geralmente têm um nome longo e explícito: p. ex., Comitê Conjunto de Emergência para Impedir o Tráfego no Parque da Washington Square Exceto para Veículos de Emergência; Comitê de Emergência dos Inquilinos de Cellar Dwellers; Comissão de Vizinhos para Fazer Funcionar o Relógio do Jefferson Market Courthouse; Comitê Conjunto do Village para Derrotar a Proposta do West Village e Formular Outra Melhor.
6. Há pessoas que aparentemente conseguem comportar-se como números permutáveis e recomeçam em outro lugar exatamente do ponto em que pararam, mas provavelmente se trata dos integrantes de uma de nossas comunidades nômades fechadas e muito homogéneas, como os beatniks, militares da ativa e família ou as novas famílias de executivos itinerantes dos subúrbios, descritas por William H. Whyte em The Organization Man [O homem de empresa].