Ordem visual: limitações e potencialidades

Ao lidarmos com as cidades, estamos lidando com a vida em seu aspecto mais complexo e intenso. Por isso, há uma limitação estética fundamental no que pode ser feito com as cidades: uma cidade não pode ser uma obra de arte.

Esse é o capítulo 19
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Precisamos da arte, tanto na organização das cidades quanto em outras esferas da vida, para ajudar a explicar a vida para nós, para mostrar-nos seus significados, esclarecer a interação entre a vida de cada um de nós e a vida ao nosso redor. Talvez precisemos mais da arte para nos reassegurarmos de nossa humanidade. Todavia, embora arte e vida estejam entrelaçadas, elas não são a mesma coisa. A confusão sobre elas é, em parte, a razão de as iniciativas do planejamento urbano serem tão decepcionantes. É importante desfazer essa confusão para obter melhores táticas e estratégias de desenho urbano.

A arte tem formas próprias de ordem, e elas são rigorosas. Os artistas, seja qual for o meio que utilizem, fazem escolhas em meio ao abundante material da vida e as organizam em obras que estão sob o controle deles mesmos. Na verdade, o artista tem a sensação de que as exigências da obra (i.e., as escolhas de material feitas por ele) o dominam. O resultado mais surpreendente desse processo – se a escolha, a organização e o domínio forem consistentes – pode ser a arte. Mas a essência desse processo é uma escolha disciplinada, excessivamente discriminada, a partir da vida. Em relação à abrangência e à complexidade literalmente infinitas da vida, arte é arbítrio, simbolismo e abstração. Esse é o valor e a origem de uma forma de ordem e coerência toda própria.

Encarar a cidade, ou mesmo um bairro, como se fosse um problema arquitetônico mais amplo, passível de adquirir ordem por meio de sua transformação numa obra de arte disciplinada, é cometer o erro de tentar substituir a vida pela arte.

O resultado de uma confusão tão profunda entre arte e vida não é nem arte nem vida. É taxidermia. Em local condizente, a taxidermia pode ser uma ocupação útil e digna. No entanto, vai-se longe demais quando os espécimes em exposição são cidades mortas, empalhadas.

Como todas as tentativas de fazer arte que se distanciam da verdade e perdem o respeito pelo objeto com que lidam, esse ofício de taxidermia urbana torna-se, nas mãos de seus executores mestres, cada vez mais detalhista e rebuscado. Essa é a única forma de avanço que lhe é possível.

Isso não passa de um mau uso da arte, que aniquila a vida (e aniquila a arte). Os resultados empobrecem a vida, ao invés de enriquecê-la.

Sem dúvida, é possível o processo de criação da arte não ser tão individualista quanto costuma ser em nossa sociedade.

Sob certas circunstâncias, a criação da arte pode ser feita por consenso geral e, na verdade, anônimo. Por exemplo, numa sociedade fechada, numa sociedade tecnologicamente limitada ou numa sociedade reprimida, tanto a necessidade profunda quanto a tradição e os costumes podem impor a todos uma seleção disciplinada de propósitos e materiais, uma disciplina consensual sobre o que esses materiais pedem de seus organizadores e um controle disciplinado das formas assim criadas. Tais sociedades podem produzir vilas e talvez, até, tipos particulares de cidade que no conjunto nos pareçam obras de arte.

Porém, esse não é nosso caso. Para nós, essas sociedades podem ser interessantes para uma análise; e talvez contemplemos sua harmoniosa obra com admiração ou uma espécie de nostalgia e nos perguntemos melancolicamente por que não conseguimos fazer igual.

Não conseguimos fazer igual porque a limitação das potencialidades e a censura aos indivíduos nessas sociedades vão muito além dos materiais e das concepções utilizadas na criação de obras de arte a partir da matéria da vida cotidiana. A limitação e a censura permeiam todos os campos de oportunidades (incluindo a oportunidade intelectual) e as relações entre as próprias pessoas. A limitação e a censura poderiam soar para nós como um embrutecimento da vida desnecessário e intolerável. A despeito de todo o nosso conformismo, somos por demais audaciosos, inquisitivos, egoístas e competitivos para sermos uma sociedade harmoniosa de artistas por consenso e, além do mais, valorizamos excessivamente nossos traços que nos impedem de sê-lo. Nem esse é o uso construtivo que fazemos das cidades ou a razão pela qual as valorizamos: incorporar a tradição ou manifestar (e petrificar) um consenso harmonioso.

Os utópicos do século XIX, com sua rejeição à sociedade urbanizada e a herança da ideia romântica do século XVIII sobre a nobreza e a simplicidade do homem “natural” ou primitivo, eram muito atraídos pela ideia de ambientes simples, que eram obras de arte por consenso harmonioso. O retorno a essa condição foi uma das esperanças incorporadas à nossa tradição da reforma utópica.

Essa esperança fútil (e profundamente reacionária) impregnou também a utopia do movimento urbanístico Cidade-Jardim e, pelo menos ideologicamente, abrandou um pouco a tese predominante de harmonia e ordem impostas e cristalizadas por um planejamento autoritário.

A ânsia por um ambiente simples, eventual, constituído de arte consensual – ou melhor, um vestígio tênue dessa ânsia – continuou pairando sobre a teoria urbanística da Cidade-Jardim quando ela não se deixou contaminar pelo urbanismo da Ville Radieuse e do City Beautiful. Assim, já nos anos 1930, Lewis Mumford, em The Culture of Cities [A cultura das cidades], deu destaque – o que seria realmente incompreensível não fosse a tradição – a ocupações como cestaria, cerâmica e serralheria nos núcleos urbanos planejados que ele imaginou para nós. Nos anos 1950, na ocasião em que recebeu a medalha de ouro do Instituto de Arquitetos Norte-Americanos pela contribuição ao progresso da arquitetura, Clarence Stein, principal urbanista norte-americano da Cidade-Jardim, estava à cata de alguma coisa que pudesse ser criada por consenso harmonioso nas comunidades ideais que imaginava. Propôs que se permitisse aos cidadãos a construção de uma escola maternal – claro, com as próprias mãos. Mas o cerne da mensagem de Stein era que, além da concessão da escola maternal, os arquitetos do empreendimento tivessem controle total, absoluto e inquestionável sobre todo o ambiente físico da comunidade e todas as decisões relativas a ele.

Obviamente isso não tem diferença alguma das presunções da Ville Radieuse e da City Beautiful. Elas sempre foram antes de tudo um culto ao projeto arquitetônico, em vez de um culto à reforma social.

Indiretamente, por meio da tradição utópica, e diretamente, por meio da doutrina mais realista da arte por imposição, o planejamento urbano moderno tem-se sobrecarregado desde o início com o objetivo equivocado de converter cidades em obras de arte.

Da mesma maneira que os construtores, que não sabem por onde começar quando pensam no que fazer além de empreendimentos por faixa de renda, ou os engenheiros de tráfego, que não sabem por onde começar quando pensam no que fazer além de acomodar mais carros, os arquitetos que se aventuram no desenho urbano geralmente não sabem por onde começar quando pensam no que fazer para criar uma ordem visual nas cidades, a não ser substituindo a ordem da arte pela ordem da vida, bastante diferente. Eles não sabem fazer muito mais que isso. Não sabem desenvolver táticas diferentes por lhes faltar uma estratégia de projeto adequada às cidades.

Em vez de tentar substituir a vida pela arte, os projetistas urbanos deveriam retomar a estratégia de dignificar tanto a arte quanto a vida: uma estratégia para iluminar e elucidar a vida e contribuir para nos explicar seus significados e sua ordem – nesse caso, contribuindo para esclarecer, elucidar e explicar a ordem das cidades.

Sempre nos contam mentiras banais sobre a ordem nas cidades, em tom de ensinamento, certos de que a duplicação representa ordem. É a coisa mais fácil do mundo pegar algumas formas, dar-lhes uma uniformidade rígida e tentar impor o resultado em nome da ordem. No entanto, a uniformidade rígida, trivial, e os sistemas significativos de ordem funcional raramente são compatíveis na realidade.

  1. preciso ter compreensão para ver os complexos sistemas de ordem funcional como ordem, e não como caos. As folhas que caem das árvores no outono, a parte interna de um motor de avião, as entranhas de um coelho dissecado, a redação de um jornal – tudo isso parece caótico se não for compreendido. Assim que são compreendidos como sistemas ordenados, eles realmente são vistos de modo diferente.

Por usarmos as cidades e, portanto, termos experiência com elas, já temos um bom ponto de partida para compreender e valorizar sua ordem. Parte da nossa dificuldade em compreendê-las e boa parte da desagradável impressão de caos provêm da falta de recursos visuais suficientes para apoiar a ordem visual e, pior ainda, provêm de incoerências visuais evitáveis.

Todavia, é infrutífero procurar por um elemento-chave ou um pivô que, se apresentado com clareza, elucide tudo. Na verdade, não há na cidade um único elemento que seja pivô ou chave. A própria mistura é o elemento fundamental, e a sustentação mútua, a ordem.

Quando urbanistas e planejadores urbanos tentam encontrar um meio de expressar, de modo claro e fácil, o “esqueleto” da estrutura da cidade (as vias expressas e os passeios são os atuais favoritos), o princípio está errado. Uma cidade não pode ser constituída como um mamífero ou um prédio com estrutura de aço – ou mesmo uma colmeia ou um coral. A estrutura real das cidades consiste na combinação de usos, e nós nos aproximamos de seus segredos estruturais quando lidamos com as condições que geram a diversidade.

Pelo fato de a própria cidade ser um sistema estrutural, pode-se compreendê-la melhor pelo que ela é, e não por intermédio de outros tipos de organismos ou estruturas. Porém, se o recurso traiçoeiro da analogia ajudar na compreensão, talvez a melhor analogia seja imaginar um campo extenso na escuridão. Nesse campo há muitas fogueiras acesas. São de vários tamanhos, algumas grandes, outras pequenas; algumas distantes, outras espalhadas bem próximo; algumas se avivam, outras se apagam. Cada fogueira, grande ou pequena, lança sua luz nas trevas à sua volta e, assim, cria um espaço. Mas o espaço e sua forma só existem porque a luz do fogo os cria.

As trevas não têm forma nem feitio, a não ser onde a luz as transforma em espaço. Nos locais em que as trevas entre as luzes tornam-se profundas, indefinidas e sem forma, a única maneira de lhes dar forma ou estrutura é acendendo outras fogueiras ou ampliando bastante as existentes.

Só a complexidade e a vitalidade de usos dão às regiões das cidades estrutura e forma adequadas. Kevin Lynch, em seu livro The Image of the City [A imagem da cidade], menciona o fenômeno das áreas “abandonadas”, lugares que as pessoas entrevistadas ignoram inteiramente ou dos quais nem têm lembrança, a não ser que se fale deles, embora esses locais “esquecidos” aparentemente não mereçam o esquecimento e às vezes esses entrevistados tenham acabado de passar por eles na realidade ou na imaginação1.

Os locais das cidades em que as fogueiras de uso e vitalidade não conseguem crescer, tornam-se escuros, sem forma e sem estrutura urbana. Sem essa luz vital, não adianta procurar dar forma a um lugar urbano com “esqueletos” ou “arcabouços” ou “células”.

Essas fogueiras metafóricas que definem espaços são formadas – voltando à realidade concreta

– por áreas onde os diversos usos e usuários urbanos dão-se mutuamente apoio concentrado e dinâmico.

Essa é a ordem essencial para a qual o desenho urbano pode contribuir. É necessário tornar clara a extraordinária ordem funcional dessas áreas de vitalidade. À medida que as cidades ganham mais áreas desse tipo, e menos áreas apagadas ou trevas, crescem a necessidade e as oportunidades de tornar clara essa ordem.

O que quer que se faça para explicitar essa ordem, essa vida complexa, deve ser feito principalmente por meio das táticas de ênfase e sugestão.

A sugestão – a parte pelo todo – é um dos principais recursos de comunicação da arte; é por isso que a arte sempre nos diz tanto com tão pouco. Uma das razões de entendermos essa comunicação pela sugestão ou pelo símbolo é que se trata, até certo ponto, da maneira como todos nós vemos a vida e o mundo. Estamos sempre fazendo escolhas sistematizadas do que consideramos relevante e pertinente dentre todas aquelas que nos atingem os sentidos. Refutamos, ou escondemos num nível de consciência secundário, as impressões que não fazem sentido para nossos propósitos no momento – a não ser que essas impressões não pertinentes sejam fortes demais para serem ignoradas. De acordo com nossos propósitos, até variamos a escolha do que preservar e organizar. Nesse sentido, somos todos artistas.

Essa característica da arte e a maneira característica como vemos as coisas são qualidades que o desenho urbano pode aproveitar e transformar em trunfo.

Não é necessário que os projetistas tenham um controle literal sobre todo um campo de visão para dar ordem visual às cidades. É raro a arte ser tão cabalmente literal e, se o for, é uma arte pobre. Um controle estético literal nas cidades é geralmente enfadonho para todos, exceto para os projetistas que o executam, e às vezes, depois de exercido, torna-se enfadonho também para eles.

Não dá espaço para a descoberta, a organização ou a participação pessoal de cada um.

As táticas necessárias são sugestões que ajudem as pessoas a construir para si mesmas ordem e sentido, em vez de caos, a partir do que elas veem.

As ruas constituem as principais paisagens das cidades.

Todavia, muitas ruas juntas apresentam diante de nossos olhos uma contradição profunda e desnorteante. Em primeiro plano, elas deixam transparecer todos os tipos de detalhe e atividade. Elas mostram visualmente (o que é muito útil para entendermos a ordem das cidades) que a vida é intensa e se compõe de várias coisas diferentes. Essa demonstração não se deve apenas ao fato de constatarmos a existência da atividade em si, mas também ao fato de enxergarmos evidências estáticas de atividade e diversidade nos vários tipos de edifícios, placas, fachadas de lojas ou outras empresas ou instituições, e assim por diante. No entanto, se nos distanciarmos de uma rua dessas cada vez mais, com a intensidade e a complexidade do primeiro plano aparentemente se desdobrando em infinitas repetições amorfas de si mesmas e por fim se desvanecendo no completo anonimato da distância, nós também teremos uma manifestação visual clara de continuidade.

Em relação à experiência humana, essas duas manifestações – uma de grande intensidade, outra de continuidade – dificilmente se reúnem num todo compreensível.

Ou um ou outro desses conjuntos de impressões deve prevalecer. Quem os capta precisa combater ou tentar suprimir um deles. Seja como for, é difícil não ter a sensação de confusão e desordem. Quanto mais dinâmico e variado for o primeiro plano (quer dizer, quanto melhor for a ordem natural de sua diversidade), mais aguda e, portanto, mais perturbadora a contradição dessas duas manifestações. Se muitas ruas incorporarem esse conflito, se marcarem um bairro ou uma cidade inteira com essa ambiguidade, a impressão geral tende a ser caótica.

Há, é claro, duas maneiras de olhar uma rua dessas. Se se dá prioridade ao olhar a distância, com suas conotações de repetição e continuidade, a perspectiva visual a curta distância e a intensidade que ela transmite parecem supérfluas e desagradáveis. Acho que é assim que muitos observadores formados em arquitetura veem as ruas das cidades, e essa é uma das razões da impaciência, ou até mesmo do desdém, que muitos (não todos) dos que se formaram em arquitetura manifestam para com as evidências concretas de diversidade, liberdade e vitalidade urbana.

Se, por outro lado, a perspectiva em primeiro plano tiver precedência, a repetição e a continuidade infinitas de distâncias confusas, indefinidas, é que se tornam o elemento supérfluo, desagradável e sem sentido. Acho que é assim que a maioria vê as ruas na maior parte do tempo, porque essa é a perspectiva da pessoa cujo propósito é utilizar o que existe na rua, em vez de olhar para ela isoladamente. Ao olhar para a rua dessa maneira, o observador dá significado e ao menos um mínimo de ordem a partir de um olhar íntimo, mas só se considerar o olhar a distância uma confusão deplorável, quando possível apagada da memória.

  1. preciso abordar essa contradição fundamental das fortes impressões visuais para que haja ao menos um mínimo de ordem visual na maioria dessas ruas – e nos distritos em que elas predominam. Acho que é a isso que as pessoas vindas da Europa se referem ao dizer, quase sempre, que a feiura das nossas cidades se deve ao traçado ortogonal das ruas.

Para que haja uma ordem funcional na cidade, é necessário haver intensidade e diversidade; retirá-las das ruas significa destruir uma ordem funcional, imprescindível. Por outro lado, porém, para que haja ordem na cidade não é necessário haver uma impressão de continuidade; essa impressão pode ser atenuada sem prejuízo da ordem funcional. Na verdade, ao atenuá-la, ressalta-se a qualidade realmente significativa da intensidade.

Portanto, boa parte das ruas (e não todas) precisa de recortes visuais, para romper a indefinição da perspectiva a distância e ao mesmo tempo aumentar e ressaltar a intensidade do uso da rua, fazendo-a parecer um ambiente, um todo.

Isso costuma ocorrer nas zonas antigas das nossas cidades, cujas ruas têm traçado irregular. Todavia, elas têm a desvantagem de possuir um sistema viário difícil de compreender; as pessoas se perdem facilmente e têm enorme dificuldade para construir um mapa mental dessas ruas.

Nos lugares em que o traçado viário predominante é ortogonal, o qual apresenta muitas vantagens, há duas maneiras de introduzir um número adequado de assimetrias e cortes visuais na paisagem urbana.

A primeira é abrir mais ruas nos locais em que as ruas da grade ortogonal são muito distantes entre si, como no West Side de Manhattan, por exemplo – ou seja, onde ruas adicionais são sempre necessárias para ajudar a gerar diversidade.

Se essas ruas forem abertas com parcimônia, levando em conta a preservação dos edifícios mais valiosos, mais bonitos ou mais diferenciados que se encontram em seu traçado previsto, e também com o objetivo de integrar as laterais ou os fundos dos prédios existentes à sua frente onde for possível, então essas ruas raramente serão retas por uma grande extensão. Elas terão curvas e às vezes uma tangente considerável. Mesmo que uma rua reta corte em dois uma quadra que era longa, ela não formará uma linha reta com sua continuação na quadra seguinte e na outra e em outra ainda, indefinidamente. Certamente haverá interseções em T, onde esses segmentos de rua desalinhados se encontram com as ruas transversais em ângulo reto. A simples moderação e a atenção à variação urbana, aliadas à consciência de que nesses casos a irregularidade é vantajosa, podem apontar o melhor caminho dentre vários possíveis para a abertura de novas ruas. Deve-se provocar uma destruição física mínima, juntamente com uma melhora visual máxima; esses dois objetivos não são conflitantes.

Não é difícil compreender uma assimetria auxiliar no traçado ortogonal. Ruas suplementares como essas, abertas entre as ruas ortogonais, poderiam até ser denominadas de acordo com sua posição na malha.

A combinação de um traçado ortogonal, facilmente compreensível, com ruas irregulares, abertas intencionalmente nos locais em que a malha é muito espaçada para o bom funcionamento da cidade, poderia ser, acho eu, uma contribuição norte-americana das mais valiosas e diferenciadas para as táticas do planejamento urbano.

A segunda maneira de introduzir assimetrias e recortes visuais onde eles são insuficientes diz respeito às próprias ruas ortogonais.

São Francisco é uma cidade com muitos recortes visuais naturais em seu traçado de ruas em malha. As ruas de São Francisco compõem, em geral, uma disposição regular ortogonal numa planta bidimensional; no entanto, na topografia tridimensional, elas são obras-primas de recortes visuais. Os vários morros íngremes provocam uma diferenciação constante entre o panorama próximo e o distante, e tanto faz que se olhe ladeira acima ou ladeira abaixo. Essa disposição realça as cenas de rua familiares, próximas, sem prejudicar a clareza da organização em malha.

As cidades que não têm tal topografia não conseguem reproduzir naturalmente esses acidentes felizes. Todavia, elas podem introduzir recortes visuais no padrão retilíneo e regular das ruas sem prejudicar a clareza da organização e da locomoção. As passarelas que conectam dois edifícios pelo alto às vezes desempenham essa função; e o mesmo ocorre com prédios que transpõem uma rua. De vez em quando podem-se colocar edifícios grandes (de preferência de interesse público) em frente a ruas retas no nível do chão. O terminal da Estação Central de Nova York é um exemplo bem conhecido2.

As ruas retas, “infindáveis”, podem ser interrompidas, e a própria rua dividir-se no entorno de uma praça ou esplanada, formando a interrupção; essa praça pode ser ocupada por um edifício. Nos casos em que o trânsito de veículos possa ser impedido nas ruas retas, existe a possibilidade de colocar pequenos parques atravessados de calçada a calçada; o recorte ou a atração visual poderiam ser obtidos aqui com arvoredos ou com equipamentos de parques de pequeno porte (e, esperamos, alegres).

Em outros casos ainda, o elemento de atração visual não precisa cruzar uma rua reta, mas pode ser obtido com um prédio ou um conjunto de prédios avançando no alinhamento das construções, com a calçada correndo por baixo. Outra forma de movimento é uma praça num lado da rua, o que faz o prédio depois dela destacar-se na forma de uma barreira visual.

Pode-se pensar que toda essa diversidade visual na intensidade de uso da rua seja muito opressiva ou mesmo desumana. Mas não é. Os distritos que apresentam vários recortes visuais não costumam intimidar nem oprimir as pessoas na prática; costumam ser caracterizados antes como “amistosos” e ser identificados como distritos. Afinal, é a intensidade da vida humana que está sendo reconhecida e enfatizada e, além do mais, enfatizada no que ela tem de mais inteligível e familiar. É o caráter urbano de continuidade e da repetição que em geral soa opressivo, desumano e ininteligível.

Contudo, pode haver armadilhas no uso dos recortes visuais das ruas.

Primeiro, não há por que usá-los onde não haja indícios visuais de intensidade e detalhe nas ruas. Se a rua mostra, na verdade, uma grande repetição de um tipo de uso, o que implica pouca atividade, um recorte visual não tornará explícito o tipo de ordem existente. A delimitação visual do nada (em termos de intensidade urbana) não passa de um capricho do projeto. Os recortes visuais e as perspectivas, em si, não implicam vitalidade e intensidade urbana nem a segurança, o interesse, a vida pública informal e a oportunidade econômica concomitantes. Isso só se obtém com os quatro geradores fundamentais de diversidade.

Segundo, não é necessário, e seria até enfadonho, se todas as ruas tivessem recortes visuais. Afinal, uma cidade grande é um lugar enorme, e não há nada de errado em reconhecer e reafirmar esse fato de vez em quando. (Outra das vantagens dos morros de São Francisco, por exemplo, é que as perspectivas visuais propiciam exatamente isso, ao mesmo tempo que separam o que está distante da vista da rua em primeiro plano.) Uma continuidade ocasional, ou melhor, uma distância focal longa nas ruas proporciona variação. Não se deveriam fazer recortes visuais em algumas ruas que correm ao longo de fronteiras, como cursos de água, campi ou quadras de esportes amplas. Não é preciso que esse fato fique patente em todas as ruas limitadas por fronteiras, mas em algumas seria bom, tanto para dar uma visão distante do que é diferente quanto para transmitir uma informação casual sobre a localização da fronteira – um tipo de dica de orientação, aliás, que Lynch descobriu ser muito importante para as pessoas que ele entrevistou em seu estudo sobre a imagem que se constrói da cidade.

Terceiro, os recortes visuais das ruas deveriam ser, funcionalmente, não becos, mas “esquinas”. Os recortes físicos concretos do trânsito de pedestres são particularmente prejudiciais nas cidades. Deve haver sempre um caminho em torno ou através dessas interrupções, que se torne óbvio quando a pessoa se aproxima delas e dê um novo panorama da rua. Essa característica tentadora das interrupções visuais projetadas foi resumida com precisão pelo falecido arquiteto Eliel Saarinen, que teria dito, ao explicar as premissas de seus projetos: “Deve haver sempre um término na perspectiva visual, e o término não deve ser o fim.”

Quarto, as barreiras visuais ganham força em parte por serem exceções à regra. Muitas barreiras do mesmo tipo podem neutralizar-se. Por exemplo, se houver várias praças ao longo de uma rua, esta perde visualmente a característica de rua, sem falar na perda de funcionalidade. Se houver um grande número de prédios avançados com arcadas embaixo e eles não forem só uma exceção, o efeito é de estreitamento da rua e até de claustrofobia.

Quinto, um recorte visual na rua constitui um chamariz natural, e sua característica tem grande relação com a impressão que se tem do panorama como um todo. Se for banal, vazio ou simplesmente confuso, é melhor que nem exista. Um posto de gasolina, uma série de outdoors ou um edifício vazio e abandonado em tal lugar só provocam monotonia, em função de seu tamanho. Uma interrupção visual que também seja bonita é uma maravilha, mas quando procuramos embelezar as cidades com muita solenidade geralmente só conseguimos ostentação. A beleza não anda por aí à toa, mas podemos desejar que os recortes visuais sejam ao menos decentes e até interessantes.

Os pontos de referência, como o nome diz, são essencialmente dicas de orientação. Porém, os bons pontos de referência têm ainda duas outras funções que ajudam a tornar clara a ordem das cidades. Primeiro, enfatizam (e também promovem) a diversidade das cidades; conseguem isso chamando a atenção para o fato de que são diferentes de seus vizinhos e importantes por serem diferentes. Segundo, em certos casos os pontos de referência podem tornar visualmente importantes as áreas urbanas que são funcionalmente importantes, mas cuja importância precisa ser reconhecida e enaltecida visualmente.

Ao apreender essas outras funções, entendemos por que vários usos distintos são vantajosos e proveitosos como pontos de referência urbanos, de acordo com seu contexto na cidade.

Vejamos primeiro o papel dos pontos de referência no aspecto da manifestação e da promoção da diversidade. Um dos motivos de um ponto de referência ser um ponto de referência é, obviamente, o fato de se encontrar num local onde ele se destaca. Mas, além disso, é necessário que essa referência seja característica por si mesma, e é essa particularidade que estamos abordando agora.

Nem todos os pontos de referência urbanos são edifícios. Porém, os edifícios são as principais referências nas cidades, e os princípios que os fazem servir bem ou mal se aplicam também à maioria dos outros tipos de marcos, como monumentos, chafarizes bonitos e assim por diante.

A boa diferenciação na aparência de um edifício quase sempre provém da diferenciação do uso que ele tem, conforme dito no Capítulo 12. Um mesmo prédio pode ser fisicamente diferenciado na sede porque seu uso é diferenciado nesse contexto, mas pode não ser diferenciado em outro local onde seu uso seja a regra e não a exceção. A capacidade de diferenciação de um ponto de referência depende consideravelmente da reciprocidade entre o próprio ponto de referência e seus vizinhos.

Em Nova York, a Igreja da Trindade, na ponta da Wall Street, é um marco famoso e efetivo. Mas a Trindade seria um elemento relativamente apagado do desenho urbano se fosse apenas uma entre uma série de igrejas ou mesmo de outras instituições de aparência simbólica. A distinção física da Trindade, que pode ser tudo menos apagada no local em que se encontra, depende parcialmente de sua boa localização como ponto de referência – num cruzamento em T e sobre uma elevação no chão –, mas também depende bastante da distinção funcional da igreja em meio a um ambiente de edifícios de escritórios. Essa diferença é tão predominante, que a Trindade provoca um clímax satisfatório na paisagem da rua, muito embora ela seja bem mais baixa que seus vizinhos. Um edifício de escritórios desse tamanho (ou de qualquer tamanho) nesse mesmo ponto vantajoso, nesse ambiente, não conseguiria ter essa função nem transmitir esse nível de ordem visual, quanto mais fazê-lo com uma correção tão espontânea e “natural”.

Da mesma forma, o prédio da Biblioteca Pública de Nova York, situada na sede comercial da Quinta Avenida com a Rua 42, constitui um excelente ponto de referência, mas não ocorre o mesmo com as bibliotecas públicas de São Francisco, Pittsburgh e Filadélfia, por exemplo. Estas têm a desvantagem de estarem situadas entre instituições que pouco se distinguem delas em função ou, invariavelmente, em aparência.

Voltando ao Capítulo 8, que trata da existência imprescindível de usos principais combinados, abordei o valor funcional da distribuição de prédios municipais importantes pela cidade cotidiana, em vez de reuni-los em conjuntos culturais ou administrativos. Além da inconveniência funcional e do desperdício econômico da diversidade de usos principais que esses projetos ocasionariam, os edifícios reunidos nessas ilhas pomposas são muito mal aproveitados como pontos de referência. Eles se eclipsam mutuamente, embora cada um, sozinho, pudesse provocar enorme efeito e ser um símbolo da diversidade de usos. Isso é terrível porque precisamos desesperadamente de mais e nunca de menos pontos de referência urbanos – marcos grandes e pequenos.

Às vezes se tenta fazer com que um edifício se torne um ponto de referência só por seu tamanho em relação aos vizinhos ou por diferenças de estilo. Geralmente, se o uso de tal edifício for fundamentalmente o mesmo daquele de seus vizinhos, ele não se distinguirá, por mais que se tente. E esse prédio também não serve à função de tornar clara a diversidade de usos e promovê-la. Na verdade, tenta-se dizer com ele que o importante na ordem das cidades são simples diferenças de tamanho ou forma. Exceto em casos muito raros de verdadeiras obras-primas arquitetônicas, essa afirmação de que tamanho ou estilo é tudo tem como resposta dos frequentadores da cidade, que não são idiotas, a afeição e a atenção que merece.

Todavia, é preciso dizer que alguns edifícios que dependem do tamanho para serem notados desempenham bem as funções de ponto de referência e de atração visual para as pessoas que estão a distância. Em Nova York, são exemplos o edifício Empire State e a torre Consolidated Edison, com um enorme relógio iluminado. Isso porque, para as pessoas que os veem de perto, esses mesmos prédios, com diferenças irrelevantes em relação aos vizinhos, são pontos de referência irrelevantes. A Câmara Municipal de Filadélfia, com uma torre rematada por uma estátua de William Penn, é um ponto de referência esplêndido de longe; e sua capacidade de diferenciação real, não superficial, em meio à vizinhança na cidade também faz dela um ponto de referência esplêndido de perto. O tamanho às vezes funciona para um ponto de referência distante. Para os pontos de referência próximos, a distinção do uso e a afirmação da importância das diferenças são o que importa.

Esses princípios aplicam-se também aos marcos de pequeno porte. Uma escola primária pode ser um ponto de referência local por ter um uso especial na vizinhança e por ser facilmente reconhecível. Vários usos diferentes podem servir de pontos de referência, desde que sejam diferentes em seu contexto. Por exemplo, moradores de Spokane, Washington, dizem que um ponto de referência bem destacado e bem conceituado é o Hotel Davenport, que também serve, como às vezes

  1. próprio dos hotéis, como local único e principal ponto de encontro e convivência pública. Numa zona essencialmente residencial, os locais de trabalho que sejam bem conceituados podem tornar-se pontos de referência, e quase sempre o fazem.

Alguns espaços ao ar livre que atuam como centros de atração, às vezes chamados de pontos centrais, têm muitas das características de um ponto de referência, e boa parte de seu poder de tornar a ordem mais explícita provém da diferenciação de seu uso, como ocorre com as edificações que são pontos de referência. A praça do Rockefeller Center de Nova York é assim; para as pessoas que estão nas ruas próximas, ela é muito mais um “marco” do que o arranha-céu que fica atrás dela ou os espigões menores que a rodeiam.

Agora vejamos aquela segunda função que os pontos de referência podem exercer para tornar clara a ordem das cidades: sua capacidade de ajudar a manifestar visualmente, explicitamente, que um lugar importante é aquele que, na verdade, tem importância funcional.

Os centros de atividades, para os quais as pessoas convergem e onde se concentram, têm importância tanto econômica quanto social nas cidades. Às vezes são importantes na vida da cidade como um todo; às vezes, para um distrito ou uma vizinhança específica. Mesmo assim, tais centros podem não ter o destaque visual ou a importância que sua função merece. Quando isso acontece, as pessoas recebem uma informação visual contraditória e confusa. Ao se ver atividade e intensidade no uso do solo tem-se a sensação de Importância. A ausência de um clímax visual ou de algo que enobreça remete à sensação de Desimportância.

Pelo fato de o comércio predominar na maioria dos centros urbanos, um ponto de referência efetivo nesse lugar em geral precisa ser nitidamente não comercial.

As pessoas apegam-se aos pontos de referência existentes nos centros de atividade, e nesse aspecto o instinto delas a respeito da ordem urbana se justifica. No Greenwich Village, o antigo Jefferson Market Courthouse, que não funciona mais como Palácio da Justiça, ocupa um local de destaque adjacente a uma das áreas mais movimentadas do lugar. É um prédio vitoriano rebuscado, e as opiniões divergem radicalmente sobre a beleza ou feiura de sua arquitetura. No entanto, é opinião quase unânime, mesmo entre os que não gostam da arquitetura do edifício, que ele deve ser preservado e usado para alguma coisa. Os moradores da área e os estudantes de arquitetura que os auxiliam despenderam muito tempo estudando detalhadamente o interior do edifício, seu estado e potencial. Entidades civis gastaram tempo, esforçaram-se e pressionaram para que ele fosse preservado, e uma organização foi criada para financiar a restauração do relógio público da torre e fazê-lo funcionar! Os responsáveis pela Biblioteca Pública, percebendo o valor arquitetônico e econômico do edifício, pediram recentemente ao município recursos para convertê-lo numa grande filial da biblioteca.

Por que todo esse alvoroço em torno de um edifício específico situado no centro, que poderia render muito dinheiro para alguém e alguns impostos a mais para o município se fosse usado para comércio e moradia, como a maioria dos locais à sua volta?

Acontece que, funcionalmente, só essa diferença de uso como biblioteca se faz necessária aqui, para ajudar a vencer a autodestruição da diversidade. Todavia, poucas pessoas têm conhecimento dessa necessidade funcional ou têm consciência de que um prédio desses pode ajudar a firmar a diversidade. Mais precisamente, parece haver um forte consenso popular de que visualmente toda a movimentada vizinhança desse ponto de referência perderá sentido – em síntese, sua ordem ficará mais confusa do que clara – se esse ponto for substituído pelos usos que já existem à volta.

Mesmo os marcos visuais naturalmente absurdos num centro de atividades parecem satisfazer os usuários. Por exemplo, em St. Louis há uma alta coluna de concreto no meio de um centro comercial malcuidado num bairro apagado e degradado. Já foi uma caixa-d’água. Há muitos anos, quando a caixa-d’água foi retirada, os moradores conseguiram que a prefeitura mantivesse a coluna, que eles próprios reformaram. Ela ainda dá nome ao distrito, Caixa-d’água, e uma distinção meio patética a ele, que de outra forma dificilmente seria reconhecível como distrito.

Em sua função de explicitar a ordem urbana, os pontos de referência funcionam melhor quando se encontram em meio a seus vizinhos, como nos exemplos que mencionei. Se forem separados e isolados do panorama geral, eles contradizem um aspecto importante das diferenças urbanas, em vez de evidenciá-las e reforçá-las visualmente: o de que elas se apoiam mutuamente. Isso também precisa ficar claro por meio da sugestão.

Os chamarizes, como eu já mencionei ao falar dos recortes visuais nas ruas, têm uma importância desproporcional em relação ao espaço físico que ocupam.

Alguns são chamarizes apenas por aquilo que são, mais que pelo lugar onde se encontram: um prédio peculiar, por exemplo, ou um grupo reduzido de edifícios que se destaquem por suas características numa vista panorâmica de um parque. Não acho nem necessário nem oportuno tentar criar ou controlar intencionalmente esse tipo de chamariz. Nos lugares onde se gera diversidade, onde há mistura de idades e tipos de edifícios e onde há oportunidade e boa acolhida para os projetos e os gostos de muita gente, sempre surge esse tipo de chamariz, que é mais surpreendente, variado e interessante do que se fosse planejado por qualquer pessoa voltada para o projeto urbano. A verdade é mais invulgar que a ficção.

Porém, outros chamarizes o são pelo local exato em que se encontram e devem ser considerados elementos intencionais do projeto urbano. Primeiro, é preciso haver pontos que simplesmente atraiam o olhar – por exemplo, recortes visuais nas ruas. Segundo, tais pontos devem ter alguma valia. Esses pontos bastante visíveis são escassos, raros; são apenas um ou dois em meio a uma profusão de edifícios e locais que constituem a paisagem da rua. Não podemos, portanto, contar com a lei das probabilidades ou só com o acaso para ter um realce visual exatamente nesses pontos de atração naturais. Geralmente, apenas uma boa cor de tinta num prédio já existente (e uma diminuição dos outdoors) basta. Às vezes se torna necessário um edifício novo ou um novo uso nesses pontos – ou até um marco. Cuidando-se dos poucos pontos que são chamarizes espontâneos, podem-se dar um caráter, um interesse e um realce muito grandes a toda uma paisagem por meio da sugestão, e com um mínimo de padronização no projeto e um máximo de economia de instrumentos e táticas.

A importância desses lugares e de lhes dar valor são questões bem abordadas em Planning and Community Appearance [Planejamento e participação comunitária], libreto elaborado por uma comissão de urbanistas e arquitetos de Nova York formada para investigar os problemas de gestão de projetos municipais. As principais recomendações da comissão foram que os locais cruciais da comunidade no aspecto visual fossem identificados e o zoneamento desses pequenos pontos exigisse um tratamento especial. Não se ganharia nada, dizia o parecer da comissão, com a pura e simples inclusão desses chamarizes nos planos genéricos de zoneamento e planejamento3. Só a localização deles já dá um significado especial e excepcional às construções desses locais escassos, e ignorar isso significaria desconsiderar uma realidade das mais evidentes.

Há certas ruas que, na ausência de bons chamarizes ou mesmo com eles, precisam de outro tipo de contribuição de projeto. Precisam de instrumentos de integração que insinuem que a rua, com toda a sua diversidade, é também um todo.

Mencionei no Capítulo 12 uma tática boa para certas ruas com residências e comércio combinados, cujo fim é evitar que os usos incongruentemente dominantes provoquem uma explosão ou desintegração visual. A tática adequada para a unidade visual dessas ruas, como já explicado, é fazer um zoneamento que limite a extensão da fachada principal de qualquer empreendimento.

Outro conjunto de táticas de unificação da rua poderia explorar o princípio segundo o qual um elemento forte e não obstrutivo do projeto reúna de maneira ordenada boa parte dos detalhes casuais. Essa integração pode funcionar bem nas ruas que tenham uso intenso, sejam muito conhecidas e possuam muitos detalhes sem grande variedade efetiva de usos – ruas quase exclusivamente comerciais, por exemplo.

Uma das mais simples dessas técnicas são árvores ao longo do trecho que se quer integrar, mas árvores plantadas suficientemente próximas de modo a dar ideia de continuidade quando vistas de perto e a tornar o espaço entre elas imperceptível quando observadas a distância. Os pavimentos também podem servir como elemento de unificação; quer dizer, revestimentos de calçadas com um padrão nítido e simples. Também se pode pensar em toldos de cores vivas.

Cada rua que necessite de um desses elementos é um caso e talvez precise de soluções específicas4. Os instrumentos de unificação escondem uma armadilha. Uma das razões da força do elemento unificador é ser ele importante para o lugar. O próprio céu, de certa maneira, integra praticamente todas as paisagens, mas sua presença constante faz dele um elemento de unificação ineficaz na maioria das paisagens. Um elemento unificador dá apenas uma sugestão visual de totalidade e ordem; a pessoa que olha é quem completa a unificação, usando essa sugestão para ajudá-la a organizar aquilo que vê. Se ela vir exatamente o mesmo elemento de unificação em lugares e paisagens distintos, ela inconscientemente os desconsiderará.

Todas essas variadas táticas de obtenção de uma ordem visual urbana dizem respeito a detalhes das cidades – os quais, sem dúvida, se entrelaçam numa estrutura urbana de usos cuja trama seja o mais contínua e fechada possível. Mas a ênfase nos detalhes é fundamental: a cidade é isso – detalhes que se complementam e se sustentam mutuamente.

Talvez tudo isso pareça um grande lugar-comum se comparado com a magnitude e o arrebatamento das autoestradas ou à beleza misteriosa das tendas em forma de colmeia das aldeias tribais sul-africanas. Mas o que temos para falar sobre as nossas cidades não é motivo de zombaria. A ordem complexa que apresentam – manifestação da liberdade de inúmeras pessoas de fazer e levar adiante seus inúmeros projetos – é sob muitos aspectos um grande milagre. Não devemos relutar em tornar mais compreensível esse acervo vivo de usos interdependentes, essa liberdade, essa vida por aquilo que eles são, nem ser inconscientes acerca do que representam.

1. O professor Lynch comenta um fenômeno parecido a respeito de vias expressas: “Muitos entrevistados [de Los Angeles] tiveram dificuldade em fazer uma relação mental entre a via de alta velocidade e o restante da estrutura urbana, da mesma forma que em Boston. Mentalmente, elas podiam até atravessar a pé a Via Expressa Hollywood como se não se tratasse dela. Uma artéria de alta velocidade pode não ser necessariamente a melhor maneira de delimitar visualmente um distrito central.”

2. Ele também possui um exemplo de rua adicional, a Avenida Vanderbilt, com términos em T; na ponta norte em T da Vanderbilt há um belo edifício novo, o Union Carbide, que na verdade transpõe a calçada; as quadras curtas entre a Vanderbilt e a Madison ilustram, aliás, a locomoção e a comodidade de pedestres típicas das quadras curtas.

3. Esse libreto, que pode ser obtido na Associação de Planejamento Regional de Nova York, também fala das exigências legislativas, regulamentares e tributárias necessárias em tal abordagem e, assim, é importante para qualquer pessoa seriamente interessada na ordem visual urbana.

4. Os efeitos dos vários tipos de elementos unificadores – e também de recortes visuais bons ou ruins, pontos de referência e várias outras coisas – são enfocados e explicados em dois livros excelentes sobre projeto de cidades, vilas e da região rural da Inglaterra: Outrage [Afronta] e Counter Attack [Contra-ataque], ambos de Gordon Cullen e Ian Nairn.