O tipo de problema que é a cidade

O raciocínio, da mesma maneira que outras atividades, também tem suas estratégias e táticas. Para pensar simplesmente sobre as cidades e chegar a alguma conclusão, uma das coisas principais que se devem saber é que tipo de problema as cidades representam, já que todos os problemas não podem ser analisados da mesma maneira. As linhas de raciocínio que possam ser úteis para chegar à verdade dependem não de como nós preferiríamos pensar sobre um assunto, mas sim da natureza do próprio assunto.

Esse é o capítulo 22
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Entre as várias mudanças revolucionárias deste século, talvez as mais profundas sejam as mudanças nos métodos de raciocínio que podemos usar para perscrutar o mundo. Não me refiro aos novos cérebros automatizados, mas sim aos métodos de análise e descoberta próprios dos cérebros humanos: as novas estratégias de raciocínio. Eles evoluíram principalmente como métodos científicos. Mas o despertar mental e a ousadia intelectual que representam começam a atingir pouco a pouco outros tipos de investigação. Os enigmas que pareciam insolúveis tornam-se passíveis de análise. Além do mais, a própria natureza de certos enigmas não é mais o que parecia ser.

Para entender que relação essas mudanças nas estratégias de raciocínio têm com as cidades, é preciso conhecer um pouco da história do pensamento científico. Um resumo e uma interpretação esplêndida dessa história constam de um ensaio sobre ciência e complexidade da edição de 1958 do Annual Report of The Rockefeller Center Foundation [Relatório Anual da Fundação Rockefeller Center], escrito pelo Dr. Warren Weaver ao se aposentar no cargo de vice-presidente de Ciências Médicas e Naturais. Vou transcrever um longo trecho do ensaio, porque o que o Dr. Weaver diz tem relação direta com a reflexão sobre as cidades. Suas afirmações resumem, indiretamente, quase toda a história do planejamento urbano.

O Dr. Weaver relaciona três etapas de desenvolvimento na história do pensamento científico:

  1. capacidade de lidar com problemas de simplicidade elementar; (2) capacidade de lidar com problemas de complexidade desorganizada; e (3) capacidade de lidar com problemas de complexidade organizada.

Os problemas de simplicidade elementar são aqueles que contêm dois fatores que estão diretamente relacionados na atuação – duas variáveis –, e esse tipo de problema, ressalta o Dr. Weaver, foi o primeiro que a ciência soube solucionar:

Por alto, pode-se dizer que os séculos XVII, XVIII e XIX constituíram o período em que a ciência física aprendeu a analisar problemas de duas variáveis. Durante esses trezentos anos, a ciência aprimorou a técnica experimental e a analítica para lidar com problemas em que uma quantidade – digamos, a pressão de um gás – depende fundamentalmente de uma segunda quantidade – digamos, o volume do gás. A característica principal desses problemas é o fato de que (…) a atuação da primeira quantidade pode ser descrita com um grau de precisão satisfatório levando em conta apenas sua dependência da segunda quantidade e ignorando a influência menor de outros fatores.

Esses problemas de duas variáveis têm uma estrutura essencialmente simples (…), e a simplicidade era uma condição necessária para o progresso nesse estágio de desenvolvimento da ciência.

Descobriu-se, além do mais, que teorias e experimentos com essa característica fundamentalmente simples poderiam propiciar um avanço enorme nas ciências físicas (…). Foi essa ciência de duas variáveis que, até 1900, lançou os fundamentos das nossas teorias da luz, do som, do calor e da eletricidade (…) que nos deram o telefone e o rádio, o automóvel e o avião, o fonógrafo e o cinema, a turbina e o motor a diesel e as usinas hidrelétricas modernas (…).

Só depois de 1900 um segundo método de análise de problemas foi criado pelas ciências físicas.

Algumas mentes criativas [prossegue o Dr. Weaver], em vez de estudar problemas que envolviam duas variáveis ou no máximo três ou quatro, adotaram o extremo oposto, dizendo: “Vamos criar métodos analíticos que envolvam dois bilhões de variáveis.” Quer dizer, os cientistas físicos (com os matemáticos com frequência na vanguarda) desenvolveram técnicas eficazes na teoria da probabilidade e na mecânica estatística que conseguem resolver o que podemos chamar de problemas de complexidade desorganizada (…).

Pensemos primeiro num exemplo simples para apreender a essência da ideia. A dinâmica clássica do século XIX estava preparada para analisar e predizer o movimento de uma única bola de marfim sobre uma mesa de bilhar (…). Podia-se analisar, mas com surpreendente aumento de dificuldade, o movimento de duas ou até três bolas sobre a mesa de bilhar (…). Porém, assim que se tentasse analisar o movimento de dez ou quinze bolas sobre a mesa ao mesmo tempo, como no jogo, o problema tornava-se insolúvel, não por haver alguma dificuldade teórica, mas só porque era inviável a tarefa de lidar em detalhe com tantas variáveis.

Imaginemos, contudo, uma grande mesa de bilhar com milhões de bolas movimentando-se pela superfície (…). A grande surpresa é que agora o problema se torna mais fácil: já podem ser aplicados os métodos da mecânica estatística. Sem dúvida, não

  1. possível apreender a trajetória detalhada de uma bola específica; mas podem ser respondidas com precisão satisfatória questões importantes como: em média, quantas bolas por segundo chocam-se contra determinado segmento da tabela? Em média, qual o espaço percorrido por uma bola antes de ser atingida por outra bola? (…)

    1. A palavra “desordenada” [aplica-se] à grande mesa de bilhar com muitas bolas (…) porque as bolas estão distribuídas, em suas posições e em suas trajetórias, de modo confuso (…). Mas, apesar dessa atuação confusa ou desconhecida de cada uma das variáveis, o conjunto inteiro tem certas propriedades médias ordenadas e analisáveis (…).

Uma grande variedade de práticas inclui-se sob o rótulo complexidade desorganizada (…). Ela se aplica com precisão inteiramente satisfatória ao funcionamento de uma grande estação telefônica, predizendo a frequência média de chamadas, a probabilidade de chamadas simultâneas para o mesmo número etc. Possibilita a estabilidade financeira de uma companhia de seguros (…). O movimento dos átomos que formam toda matéria, assim como o movimento das estrelas que formam o universo, está sob o alcance dessas novas técnicas. Elas analisam as leis fundamentais da hereditariedade. As leis da termodinâmica, que descrevem as tendências básicas e inevitáveis de todos os sistemas físicos, tiram proveito das considerações estatísticas. Toda a estrutura da física moderna (…) funda-se nesses conceitos estatísticos. Na verdade, reconhece-se hoje que toda a questão da evidência, e a maneira como o conhecimento pode ser inferido da evidência, depende dos mesmos princípios (…). Acabamos percebendo ainda que a teoria da comunicação e a teoria da informação também se baseiam, de modo similar, nos princípios da estatística. Pode-se dizer que os conceitos da probabilidade são essenciais para qualquer teoria do conhecimento.

No entanto, de forma alguma todos os problemas podiam ser investigados por esse método de análise. As ciências biológicas, como a biologia e a medicina, são exemplo disso, assinala o Dr. Weaver. Essas ciências também conheceram avanços, mas no geral ainda se encontravam no que o Dr. Weaver chama de etapas preliminares da aplicação da análise; elas se dedicavam à coleta, descrição, classificação e observação de efeitos aparentemente relacionados. Nessa etapa preliminar, entre as diversas coisas úteis que foram aprendidas, estava a de que as ciências biológicas não constituem nem problemas de simplicidade elementar nem problemas de complexidade desorganizada; elas apresentam um tipo diferente de problema, para o qual os métodos de abordagem estavam ainda muito atrasados em 1932, diz o Dr. Weaver.

Ele discorre sobre essa lacuna:

Existe uma tendência à simplificação na afirmação de que a metodologia científica foi de um extremo a outro (…), esquecendo-se da grande região central. A importância dessa região central, além do mais, não está relacionada com o fato de que o número de variáveis presentes é moderado – grande em comparação com duas, mas pequeno em comparação com o número de átomos existentes numa pitada de sal (…). Muito mais importante que o mero número de variáveis é o fato de essas variáveis serem inter-relacionadas (…). Esses problemas, diante das situações desordenadas que a estatística consegue resolver, mostram a característica essencial da organização. Nós nos referiremos a esse grupo de problemas como complexidade organizada.

O que faz a primula abrir-se à noite? Por que a água salgada não sacia a sede? (…) Qual é a definição bioquímica de envelhecimento? (…) O que é um gene e como a constituição genética inata de um organismo vivo se manifesta nos traços desenvolvidos por um adulto? (…)

Certamente todos esses problemas são complexos. Mas não são problemas de complexidade desorganizada, que os métodos estatísticos conseguem solucionar. São problemas que envolvem uma abordagem simultânea de um número mensurável de fatores inter-relacionados num todo orgânico.

Em 1932, quando as ciências biológicas estavam apenas no limiar do desenvolvimento de métodos analíticos efetivos para abordar a complexidade organizada, especulou-se, diz o Dr. Weaver, que, se as ciências biológicas progredissem bastante nesses problemas, “surgiriam oportunidades para empregar essas técnicas, ainda que por analogia, em vastas áreas das ciências sociais e comportamentais”.

Um quarto de século depois, as ciências biológicas realmente tiveram um progresso enorme e magnífico. Com extrema rapidez, acumularam uma quantidade de conhecimentos até então desconhecidos. Elas também adquiriram um conjunto de teorias e procedimentos muito mais apurado

– suficiente para abrir novos questionamentos de vulto e para mostrar que só se dera um primeiro passo em relação ao que ainda há por conhecer.

Contudo, esse avanço só fora possível porque se reconheceu que as ciências biológicas constituem problemas de complexidade organizada e foram analisadas e abordadas com meios adequados para a compreensão desse tipo de problema.

O progresso recente das ciências biológicas revela uma coisa tremendamente importante sobre outros problemas de complexidade organizada: que problemas desse tipo podem ser analisados – que só cabe encará-los como passíveis de compreensão, em vez de considerá-los, como afirma o Dr. Weaver, “sinistra e fatidicamente irracionais”.

Agora vejamos qual a relação disso com as cidades.

Como as ciências biológicas, as cidades são problemas de complexidade organizada. Elas apresentam “situações em que meia dúzia ou várias dúzias delas variam simultaneamente e de maneira sutilmente inter-relacionada”. As cidades, mais uma vez como as ciências biológicas, não apresentam um problema de complexidade organizada que, se compreendido, é a explicação de tudo. Elas podem ser analisadas sob vários desses problemas ou segmentos que, como nas ciências biológicas, estão também inter-relacionados. As variáveis são diversas, mas não são desordenadas; elas estão “inter-relacionadas num todo orgânico”.

Pense de novo, por exemplo, na questão de um parque urbano. Qualquer fator desse parque, isoladamente, é tão fugidio quanto uma enguia; pode significar várias coisas, dependendo da influência de outros fatores e de sua reação a eles. A intensidade de uso do parque depende em parte do próprio traçado do parque. Mas mesmo essa influência parcial do traçado do parque sobre o uso que se faz dele depende, por sua vez, da presença de pessoas para usá-lo e do momento em que o usam, e isto, por sua vez, depende dos usos da cidade à volta do próprio parque. Além disso, a influência desses usos sobre o parque é apenas em parte a questão de como cada um deles afeta o parque independentemente dos outros; é também em parte a questão de como eles afetam o parque conjuntamente, já que certas combinações estimulam o nível de influência deles sobre seus componentes. Por sua vez, esses usos urbanos próximos do parque e suas combinações dependem ainda de outros fatores, como a mistura de idades dos edifícios, o tamanho das quadras nas redondezas, e assim por diante, aí incluída a presença do próprio parque como uso comum e aglutinador nesse contexto. Aumentando consideravelmente o tamanho do parque, ou então mudando seu traçado de modo a afastar e dispersar os usuários das ruas vizinhas, em vez de juntá-los e misturá-los, então todas as correlações se desfazem. Novos grupos de influências entram em jogo, tanto no parque quanto nas redondezas. Isso está muito longe de ser uma questão de índices de áreas livres e índices populacionais. Mas não adianta querer que o problema seja mais simples ou tentar simplificá-lo, porque na prática não se trata de um problema simples. Por mais que se tente fazê-lo, um parque urbano funciona como um problema de complexidade organizada, e é isso o que ele é. O mesmo se aplica às outras partes e particularidades das cidades. Embora a inter-relação de seus vários fatores seja complexa, não há nada de acidental ou irracional na maneira como esses fatores se influenciam mutuamente.

Além do mais, nas regiões das cidades que funcionam bem em certos aspectos e mal em outros (como costuma acontecer), não podemos sequer analisar os acertos e os erros, avaliar as dificuldades ou imaginar mudanças produtivas sem enfocá-los como problemas de complexidade organizada. Para dar exemplos simplificados, uma rua pode estar garantindo muito bem a vigilância das crianças e a geração de uma vida pública natural e satisfatória, mas pode estar-se dando mal na solução de outros problemas por não estar ligada a uma comunidade mais ampla, que por sua vez pode ou não existir devido a outros conjuntos de fatores. Ou uma rua pode ter, em si, componentes físicos excelentes para gerar diversidade e um traçado admirável para a vigilância informal dos espaços públicos e ainda assim, por sua proximidade de uma zona de fronteira morta, pode ter tão pouca vida a ponto de ser evitada e temida até por seus moradores. Ou a rua pode ter uma infraestrutura insuficiente para sua funcionalidade e ainda assim estar admiravelmente ligada a um distrito com bom funcionamento e cheio de vida, de modo que essa circunstância seja suficiente para que a rua seja atraente, procurada e tenha funcionalidade suficiente. Podemos desejar que existam análises generalizadas, mais fáceis, e soluções generalizadas, mais simples, mágicas, mas o desejar não faz com que esses problemas se tornem questões mais simples do que a complexidade organizada, por mais que tentemos fugir da realidade e os tratemos como se fossem outra coisa.

Por que as cidades não são percebidas, compreendidas e tratadas como problemas de complexidade organizada há mais tempo? Se as pessoas dedicadas às ciências biológicas tiveram condições de perceber seus problemas como problemas de complexidade organizada, por que os profissionais dedicados às cidades não perceberam o tipo de problema que tinham?

A história do pensamento moderno sobre as cidades, infelizmente, é muito diferente da história do pensamento moderno sobre as ciências biológicas. Os teóricos do planejamento urbano moderno convencional têm confundido constantemente os problemas das cidades com problemas de simplicidade elementar e de complexidade desorganizada e têm tentado analisá-las e tratá-las dessa maneira. Sem dúvida essa imitação das ciências físicas não foi consciente. Provavelmente foi fruto, como costumam ser as hipóteses da maioria das linhas de pensamento, do cabedal de sementes intelectuais que germinavam na época. No entanto, entendo que esses equívocos não poderiam ter ocorrido, e certamente não teriam sido perpetuados como foram, sem um grande descaso pelo próprio assunto – as cidades. Esses equívocos interpõem-se em nosso caminho; é preciso desmascará-los, reconhecê-los como estratégias impraticáveis e descartá-los.

A teoria de planejamento da Cidade-Jardim teve origem no final do século XIX, e Ebenezer Howard abordou o problema do planejamento de cidades como um cientista de ciências físicas analisando um problema simples de duas variáveis. As duas variáveis principais na concepção de planejamento da Cidade-Jardim eram a quantidade de moradias (ou população) e o número de empregos. Elas foram consideradas como estando inter-relacionadas de maneira direta e simples, na forma de sistemas relativamente fechados. Por sua vez, as moradias tinham suas variáveis, a elas relacionadas da mesma maneira direta, simples e interdependente: playgrounds, áreas livres, escolas, centro comunitário, equipamentos e serviços padronizados. A cidade como um todo era mais uma vez considerada uma entre duas variáveis numa relação simples e direta entre cidade e cinturão verde. Como sistema ordenado, praticamente se resumia a isso. E sobre essa base simples de relações de duas variáveis foi criada uma teoria inteira de cidades autossuficientes com o fim de redistribuir a população das cidades e (esperava-se) realizar o planejamento regional.

Diga-se o que for sobre esse arranjo de cidades isoladas, não há – nem nunca haverá – como reconhecer nas grandes cidades nenhum desses sistemas simples de relações de duas variáveis. Esses sistemas também não poderiam ser reconhecidos numa cidade menor nem mesmo um dia depois de ela ter sido incluída na órbita da metrópole, com sua multiplicidade de opções e sua complexidade de usos cruzados. Porém, apesar desse fato, a teoria do planejamento aplicou persistentemente nas grandes cidades esse sistema de pensamento e análise de duas variáveis; e até hoje os planejadores urbanos e os construtores acreditam deter a preciosa verdade sobre o tipo de problema que enfrentam ao tentar configurar e reconfigurar os bairros das cidades grandes como versões de sistemas de duas variáveis, com o índice de determinada coisa (como área livre) dependendo direta e simplesmente do índice de outra coisa (como população).

Sem dúvida, enquanto os urbanistas reconheciam que as cidades constituíam um problema simples, teóricos do planejamento e urbanistas não conseguiam deixar de ver que as cidades reais não são de fato assim. Mas eles trataram disso do modo tradicional com que os desatentos (ou os irreverentes) sempre encararam os problemas de complexidade organizada: como se os quebra-cabeças fossem, nas palavras do Dr. Weaver, “sinistra e fatidicamente irracionais”1.

No fim da década de 1920 na Europa e na de 1930 nos Estados Unidos, a teoria do planejamento urbano começou a assimilar ideias mais novas sobre a teoria da probabilidade desenvolvida pela ciência física. Os planejadores passaram a reproduzir e aplicar essas análises exatamente como se as cidades fossem problemas de complexidade desorganizada, compreensíveis simplesmente por meio da análise estatística, previsíveis por meio da aplicação da probabilidade matemática, controláveis por meio da conversão em conjuntos de médias.

Essa concepção da cidade como uma coleção de gavetas de arquivo foi, efetivamente, bem adaptada pela visão da Ville Radieuse de Le Corbusier, aquela versão mais verticalizada e centralizada da Cidade-Jardim de duas variáveis. Embora o próprio Le Corbusier só tenha ensaiado uma aproximação com a análise estatística, seu plano assimilou o reordenamento estatístico de um sistema de complexidade desorganizada, solúvel matematicamente; seus arranha-céus num parque eram uma celebração artística do poder da estatística e do triunfo das médias matemáticas.

As novas técnicas de probabilidade e as suposições sobre o tipo de problema que justificam a maneira como têm sido usadas no planejamento urbano não foram além da ideia básica da cidade renovada de duas variáveis. Em vez disso, essas novas ideias foram incorporadas. Os sistemas de ordem simples, de duas variáveis, continuavam sendo a meta. Porém, agora eles podiam ter uma organização mais “racional”, a partir de um sistema de complexidade desorganizada que se supunha existir. Em resumo, os novos métodos probabilísticos e estatísticos deram mais “precisão”, mais alcance, propiciaram uma visão e uma abordagem mais “elevada” do suposto problema da cidade.

Com as técnicas da probabilidade, uma velha meta – estabelecimentos comerciais “adequadamente” inter-relacionados com as moradias vizinhas ou com uma população predeterminada – tornou-se aparentemente factível; surgiram técnicas para o planejamento “científico” de um comércio padronizado – isso, apesar de teóricos do planejamento, como Stein e Bauer, logo terem percebido que os centros comerciais planejados dentro de cidades teriam de ser ou monopolistas ou semimonopolistas, ou então as previsões estatísticas não teriam efeito e a cidade se comportaria de maneira sinistra e fatidicamente irracional.

Com essas técnicas, também passou a ser viável analisar estatisticamente, por grupos de renda e tamanho das famílias, uma quantidade determinada de pessoas despejadas na execução do planejamento, juntar o resultado à probabilidade estatística de substituição de moradias e estimar com precisão a diferença. Assim apareceu a suposta viabilidade da transferência em massa de cidadãos. Na forma de estatísticas, esses cidadãos não pertenciam mais a nenhum núcleo, a não ser a família, e podiam ser tratados racionalmente como grãos de areia ou elétrons ou bolas de bilhar. Quanto maior o número de desalojados, mais fácil se tornava o planejamento com base nas médias matemáticas. Com esse fundamento, era na verdade racionalmente fácil e sensato projetar o esvaziamento de todos os cortiços e a transferência das pessoas em dez anos e não muito mais difícil encarar isso como um trabalho para vinte anos.

Levando a conclusões lógicas a tese de que a cidade, como ela é, constitui um problema de complexidade desorganizada, os construtores e os planejadores – aparentemente impassíveis – chegaram à ideia de que quase toda falha de funcionamento poderia ser corrigida, abrindo-se e enchendo-se outra gaveta do arquivo. Daí vermos textos de projetos políticos como este: “A Lei de Habitação de 1959 (…) deve ser alterada para incluir (…) um programa habitacional para as famílias de renda média cujos rendimentos são muito altos para se adequarem aos programas habitacionais públicos e muito baixos para lhes permitir moradia adequada da iniciativa privada.”

Com as técnicas de estatística e probabilidade, também se tornou possível elaborar levantamentos de planejamento urbano monstruosos e impressionantes – levantamentos que são divulgados com trompas e clarins, não são lidos por quase ninguém e caem mansamente no esquecimento, como deveria mesmo acontecer, por não passarem de exercícios rotineiros da mecânica estatística para sistemas de complexidade desorganizada. Tornou-se ainda possível criar mapas de planos diretores para a cidade estatística, e as pessoas levam-nos mais a sério, porque costumamos acreditar que os mapas e a realidade estão necessariamente relacionados ou, se não estiverem, podemos fazer com que estejam, mudando a realidade.

Com essas técnicas, foi possível não só considerar as pessoas, seus rendimentos, suas despesas e sua moradia fundamentalmente como problemas de complexidade desorganizada, passíveis de transformação em problemas de simplicidade elementar, uma vez que os índices e as médias fossem obtidos, mas também considerar o tráfego urbano, a indústria, os parques e até instalações culturais como componentes da complexidade desorganizada, transformáveis em problemas de simplicidade elementar.

Além disso, não era difícil imaginar esquemas “coordenados” de planejamento urbano abrangendo um território ainda mais extenso. Quanto maior o território, e maior a população, mais fácil e racionalmente se poderia tratar de ambos como problemas de complexidade desorganizada, segundo o ponto de vista “elevado”. A declaração de que “uma região é uma área seguramente maior do que a última cujos problemas não conseguimos solucionar” não é, naqueles termos, irônica. É um reconhecimento simples de um fato fundamental a respeito da complexidade desorganizada; é quase como dizer que uma grande companhia de seguros é mais bem equipada para obter a média dos riscos do que uma pequena companhia de seguros.

Contudo, enquanto o planejamento urbano se atola nos profundos equívocos sobre a verdadeira natureza do problema com que lida, as ciências biológicas, livres desse erro e avançando à frente com muita rapidez, têm produzido alguns dos conceitos de que o planejamento urbano necessita: além de apresentar a estratégia básica para o reconhecimento de problemas de complexidade organizada, elas deram dicas de como analisar e abordar esse tipo de problema. É claro que esses avanços passaram das ciências biológicas para o conhecimento geral; tornaram-se integrantes do cabedal intelectual da nossa época. E, assim, um número crescente de pessoas começou paulatinamente a refletir sobre as cidades como problemas de complexidade organizada – organismos repletos de inter-relações não examinadas, mas obviamente intrincadas, e relações sem dúvida inteligíveis. Este livro é uma manifestação dessa ideia.

Tal ponto de vista ainda tem pouca aceitação entre os próprios urbanistas, os planejadores urbanos ou os homens de negócios e os legisladores que aprendem as lições do planejamento, obviamente, a partir do que está estabelecido e é aceito há muito pelos “especialistas” em planejamento. E tal ponto de vista também não tem grande aceitação nas escolas de urbanismo (talvez menos ainda aí).

O planejamento urbano, como campo de conhecimento, estagnou. Ele se agita, mas não progride. Os planos de hoje apresentam um progresso ínfimo, quando não nenhum, em relação aos planos elaborados há uma geração. Em transportes, sejam interurbanos, sejam locais, não há nada de novo que não tenha sido apresentado e divulgado pela maquete da General Motors da Feira Mundial de Nova York de 1938 e, antes dela, por Le Corbusier. Em certos aspectos, houve um claro retrocesso. Nenhuma das pálidas cópias atuais do Rockefeller Center se equipara ao original, construído há um quarto de século. Mesmo nos próprios princípios do planejamento convencional, os empreendimentos habitacionais atuais não são um aprimoramento, mas em geral um retrocesso, em comparação com aqueles dos anos 1930.

Se os planejadores urbanos e os homens de negócios, os credores e os legisladores que aprenderam com os planejadores continuarem aferrados a presunções não comprovadas de que lidam com um problema das ciências físicas, o planejamento urbano não progredirá de maneira alguma. É natural que ele estanque. Falta-lhe o primeiro requisito para uma linha de pensamento prática e progressista: o reconhecimento do tipo de problema em questão. À falta disso, ele encontrou um atalho para um beco sem saída.

O fato de as ciências biológicas e as cidades enunciarem os mesmos tipos de problemas não significa que sejam os mesmos problemas. Não se podem ver os aglomerados de protoplasmas e os aglomerados de pessoas e empresas no mesmo microscópio.

No entanto, as táticas para compreendê-los são similares, no sentido de que ambos dependem de uma visão microscópica ou detalhada, por assim dizer, e não da visão a olho nu, menos detalhada, própria para os problemas de simplicidade elementar, ou da visão telescópica, distante, própria para os problemas de complexidade desorganizada.

Nas ciências biológicas, lida-se com a complexidade organizada por meio da identificação de um fator ou quantidade específica – como enzimas – e, depois, por meio do estudo exaustivo de suas relações complexas e inter-relacionadas com outros fatores e quantidades. Observa-se tudo isso em termos da atuação (e não da simples presença) de outros fatores e quantidades específicos (e não genéricos). Sem dúvida, também se utilizam as técnicas de análise de duas variáveis e da complexidade desorganizada, mas apenas como métodos secundários.

Em princípio, trata-se de táticas quase idênticas àquelas que precisam ser empregadas para entender e atender as cidades. Quanto à compreensão das cidades, penso que os modos de reflexão mais importantes sejam estes:

  1. Refletir sobre os processos;

  2. Usar de indução, raciocinando do particular para o genérico, em vez do contrário;

  3. Procurar indícios “não médios” que envolvam uma quantidade bem pequena de coisas, as quais revelem como funciona uma quantidade maior e “média”.

Se você leu o livro até aqui, não é necessário esmiuçar essas táticas. No entanto, vou resumi-las, para destacar alguns pontos que possam ter ficado apenas implícitos.

Por que refletir sobre os processos? Os elementos das cidades – sejam eles edifícios, ruas, parques, distritos, pontos de referência, ou o que forem – podem ter efeitos inteiramente diferentes, de acordo com as circunstâncias e o contexto em que existam. Assim, por exemplo, nada pode ser entendido ou feito de proveitoso quanto à melhoria das moradias se elas forem consideradas abstratamente como “habitação”. As moradias urbanas – existentes ou por existir – são construções específicas e particularizadas, sempre incluídas em processos diversos, específicos, como recuperação de cortiços, formação de cortiços, geração de diversidade, autodestruição da

diversidade2.

Este livro discorreu sobre as cidades e seus elementos quase sempre na forma de processos, porque o assunto em pauta o exige. Os processos são cruciais para as cidades. Além disso, quando se pensa em processos urbanos, necessariamente se deve pensar nos catalisadores desses processos, os quais são também cruciais.

Os processos que ocorrem nas cidades não são misteriosos, passíveis da compreensão somente por especialistas. Podem ser compreendidos por quase todo o mundo. Várias pessoas comuns já os compreendem; acontece que elas não lhes deram nomes ou levaram em conta que, ao compreender esses esquemas triviais de causa e efeito, podemos também dar-lhes direção, se quisermos.

Por que raciocinar por indução? Porque raciocinar no sentido inverso, a partir de generalizações, acaba levando-nos a absurdos – como o caso do urbanista de Boston que acreditava (a despeito de todas as evidências reais que ele via) que o North End tinha de ser uma zona de cortiços porque as generalizações que fizeram dele um especialista diziam que tinha de ser assim.

Trata-se de uma armadilha clara, porque as generalizações em que o urbanista se apoiava são em si absurdas. No entanto, o raciocínio indutivo é importante exatamente para identificar, compreender e usar construtivamente as forças e os processos que são realmente relevantes para as cidades e, portanto, não são absurdos. Fiz generalizações consideráveis a respeito dessas forças e desses processos, mas que ninguém seja levado a acreditar que essas generalizações possam ser usadas rotineiramente para afirmar qual é o significado das particularidades deste ou daquele lugar. Os processos urbanos, na prática, são complexos demais para serem rotineiros; particularizados demais para serem aplicados como abstrações. Eles sempre se compõem de interações entre combinações singulares de peculiaridades, e nada substitui a compreensão das peculiaridades.

Um raciocínio indutivo desse tipo, repito, pode ser praticado por cidadãos comuns, interessados, e, mais uma vez, eles têm mais vantagens que os urbanistas. Estes foram treinados e disciplinados no raciocínio dedutivo, como o urbanista de Boston que só foi bom aluno. Talvez por essa formação deficiente, quase sempre os urbanistas parecem estar menos preparados intelectualmente para respeitar e compreender particularidades do que as pessoas comuns, sem especialização, que estão ligadas a um bairro, acostumadas a usá-lo e não tão acostumadas a pensar nele de maneira genérica ou abstrata.

Por que buscar indícios “sem regularidade” que envolvam uma quantidade pequena de coisas? Não há dúvida de que estudos estatísticos abrangentes podem às vezes ter utilidade como mensurações abstratas de tamanhos, amplitudes, médias e medianas disto ou daquilo. Feitas de tempos em tempos, as estatísticas podem mostrar também o que tem acontecido com essas quantidades. Contudo, elas quase nada informam a respeito das quantidades que estão funcionando nos sistemas de complexidade organizada.

Para saber como as coisas estão funcionando, precisamos ter indícios precisos. Por exemplo, todos os estudos estatísticos imagináveis sobre o centro do Brooklyn, em Nova York, não conseguem transmitir tanto sobre o problema desse centro e suas causas quanto um único anúncio de jornal de cinco linhas. Esse anúncio, da Marboro, uma cadeia de livrarias, fornece os horários de funcionamento de suas cinco filiais. Três delas (uma perto do Carnegie Hall, em Manhattan; outra perto da Biblioteca Pública, não longe da Times Square; outra no Greenwich Village) ficam abertas até meia-noite. A quarta, na Quinta Avenida com a Rua 59, fica aberta até 22 horas. A quinta, no centro do Brooklyn, fica aberta até 20 horas. Trata-se de uma gerência que mantém suas filiais abertas até tarde se houver movimento. O anúncio nos revela que o centro do Brooklyn fica vazio às 20 horas, o que é verdade. Nenhum levantamento (e certamente nenhuma previsão insensata, mecânica, projetada com base em levantamentos estatísticos, uma balela que costuma ser vista atualmente como “planejamento”) pode nos revelar algo tão relevante quanto à composição e às necessidades do centro do Brooklyn quanto aquele indício diminuto mas específico e altamente preciso do funcionamento desse centro.

  1. necessária uma quantidade enorme de regularidades para produzir irregularidades nas cidades. Mas, como assinalei no Capítulo 7, na discussão sobre os geradores de diversidade, a mera presença de grandes quantidades – de pessoas, usos, edificações, atividades de trabalho, parques, ruas, ou de qualquer coisa – não garante uma geração satisfatória de diversidade urbana. Essas quantidades podem estar atuando como elementos de sistemas inertes, de baixa vitalidade, sustentando, no máximo, a si mesmos. Ou podem constituir sistemas inter-relacionados, de grande vitalidade, gerando derivados da irregularidade.

A irregularidade pode ser concreta – como os chamarizes, que são elementos pequenos numa paisagem muito maior, mais “mediana”. Pode ser econômica – como os estabelecimentos comerciais únicos – ou cultural – como uma escola ou um teatro incomuns. Pode ser social – como as figuras públicas, os locais de lazer ou os moradores ou frequentadores que financeira, vocacional, racial ou culturalmente não são padronizados.

A quantidade de elementos irregulares, que tende a ser relativamente pequena, é indispensável para as cidades cheias de vida. Todavia, no sentido em que me refiro a elas aqui, as quantidades fora do padrão são também importantes como instrumentos de análise – como indícios. São quase sempre as únicas que transmitem o modo como as diversas quantidades maiores estão interagindo, ou deixando de interagir. Numa analogia simples, podemos pensar nas vitaminas quantitativamente escassas em protoplasmas, ou nos elementos químicos das plantas de um pasto. Essas substâncias são imprescindíveis para o funcionamento adequado dos organismos de que fazem parte; porém, sua utilidade não se restringe a isso, porque elas servem como indícios vitais do que está acontecendo nos organismos que compõem.

Qualquer cidadão, repito, pode ter consciência dos indícios irregulares – ou consciência de sua ausência. Os habitantes das cidades, na verdade, em geral são ótimos especialistas informais exatamente nesse assunto. As pessoas comuns da cidade têm uma percepção das quantidades fora do padrão que está bem de acordo com a importância dessas quantidades relativamente pequenas. E, mais uma vez, quem fica para trás são os planejadores. Eles não poderiam deixar de considerar as quantidades irregulares como comparativamente incoerentes, por serem estatisticamente incoerentes. Eles foram formados para desconsiderar o que tem mais vida.

Agora precisamos cavar mais fundo no atoleiro dos equívocos intelectuais sobre as cidades em que se meteram os reformadores e os planejadores (e todos nós). Por baixo do profundo descaso dos planejadores urbanos por seu tema, por baixo da crença pueril na irracionalidade “sinistra e fatídica”, ou caos urbano, encontra-se um equívoco há muito arraigado sobre a inter-relação das cidades – e, sem dúvida, sobre os homens – com o restante da natureza.

Os seres humanos, é óbvio, fazem parte da natureza, assim como os ursos-pardos e as abelhas e as baleias e a cana-de-açúcar. Sendo produto de uma forma de natureza, as cidades dos seres humanos são tão naturais quanto os locais onde vivem os cachorros-do-mato ou as colônias de ostras. De vez em quando, o botânico Edgar Anderson escreve na revista Landscape [Paisagem], com perspicácia e sensibilidade, sobre as cidades como uma forma da natureza. “Na maior parte do mundo”, comenta ele, “o homem é visto como uma criatura que ama as cidades.” Observar a natureza, ressalta, “é quase tão fácil na cidade como no campo; basta reconhecer que o Homem faz parte da Natureza. Lembre-se de que, como espécime do Homo sapiens, você é sem sombra de dúvida mais capaz de encontrar meios efetivos para sua espécie compreender a história natural com mais profundidade”.

Aconteceu no século XVIII um fato estranho mas compreensível. Na época, as cidades europeias haviam alcançado bons resultados na relação de seus habitantes com a natureza, a ponto de disseminar-se uma coisa antes rara – a sentimentalização da natureza, ou pelo menos a sentimentalização de um relacionamento singelo ou rude com a natureza. Uma das expressões desse sentimentalismo era, de um lado, Maria Antonieta sendo retratada como ordenhadora. A ideia romântica do “selvagem nobre” era, por outro lado, uma das mais tolas. Daí, nos Estados Unidos, a rejeição de Jefferson às cidades de artesãos e artífices livres e o sonho dele de uma república ideal de pequenos proprietários rurais autoconfiantes – sonho patético para um homem bom e importante cujas terras eram lavradas por escravos.

Na vida real, os incultos (e os lavradores) são os homens menos livres – predestinados pela tradição, oprimidos pelas castas, limitados pelo preconceito, marcados pela suspeita e pelo presságio do inesperado. “O ar da cidade liberta”, dizia um mote da Idade Média, quando o ar da cidade literalmente libertava o servo fugido. O ar da cidade ainda liberta os fugitivos das cidades empresariais, das plantações, das usinas, das chácaras de subsistência, das rotas de migração, das vilas de mineiros, dos subúrbios exclusivos.

Devido à reflexão sobre as cidades, tornou-se possível para todos ver a “natureza” como benigna, enobrecedora e pura e, consequentemente, ver da mesma forma o “homem natural” (escolha quão “natural”). Do lado oposto dessa pureza, nobreza e benignidade fictícias, as cidades, que não são tão fictícias, poderiam ser consideradas como centros de malignidade e, obviamente, inimigas da natureza. E, se as pessoas começarem a encarar a natureza como um cão são-bernardo grande e simpático para as crianças, o que seria mais natural do que o desejo de trazer também esse bicho de estimação para a cidade, a fim de que a cidade ganhasse um pouco de nobreza, pureza e benignidade por associação?

A sentimentalização da natureza é perigosa. A maioria das ideias sentimentais envolve, no fundo, um profundo descaso, ainda que inconsciente. Não há coincidência no fato de nós, norte-americanos, talvez os que mais sentimentalizam a natureza em todo o mundo, sermos ao mesmo tempo provavelmente os destruidores mais terríveis e insensíveis da área rural e das matas em todo o mundo.

Não é nem o amor pela natureza nem o respeito pela natureza que levam a essa atitude esquizofrênica. Na verdade, o que leva a isso é um desejo sentimental de se entreter, de modo bem paternalista, com um arremedo da natureza, suburbano, insípido, padronizado – descrendo clara e inteiramente de que nós e nossas cidades, só por existirmos, somos também uma parte genuína da natureza e estamos envolvidos com ela de maneira muito mais profunda e inevitável do que aparar a grama, tomar banho de sol e elevar o espírito pela contemplação. E assim, dia após dia, vários milhares de hectares da nossa zona rural são destruídos por tratores, cobertos de asfalto, pontilhados de novos moradores que mataram aquilo que esperavam descobrir. Nossa herança insubstituível de terras agrícolas de primeira (tesouro raro da natureza na terra) é sacrificada em nome de autoestradas ou estacionamentos de supermercados tão impiedosa e impensadamente quanto se arrancam as árvores das florestas, poluem-se córregos e rios e enche-se o próprio ar com gases de combustíveis (produtos da era das fábricas da natureza), necessários neste grande esforço nacional de se aproximar de uma natureza fictícia e fugir da “antinaturalidade” da cidade.

As confusões dos subúrbios e semissubúrbios que criamos dessa maneira são desprezadas por seus próprios habitantes no dia de amanhã. Falta a essas áreas dispersas, de baixa densidade, um nível aceitável de vitalidade própria, perenidade ou utilidade como núcleos urbanos. Poucas delas – e estas são de regra as mais caras – mantêm o encanto por mais de uma geração; aí elas começam a degradar-se da mesma forma que as áreas urbanas apagadas. Na verdade, grande parte dessas áreas urbanas apagadas, hoje, foi a dispersão de ontem para mais perto da “natureza”. Na zona norte de Nova Jersey, por exemplo, metade das construções nos 12 mil hectares de áreas residenciais já degradadas ou em rápida degradação tem menos de quarenta anos. Daqui a trinta anos, teremos acumulado tantos problemas de decadência e degradação em áreas de tal extensão, que os problemas atuais das áreas apagadas das grandes cidades parecerão insignificantes. E isso, apesar de fatal, não

  1. coisa que aconteça acidentalmente ou sem querer. É exatamente o que nós, como sociedade, queríamos que acontecesse.

A natureza, sentimentalizada e considerada antítese das cidades, parece ser vista como constituída de mato, ar fresco e pouca coisa mais, e o descaso absurdo resulta na devastação da natureza mesmo que ela seja formal e publicamente preservada como um objeto de estimação.

Por exemplo, subindo o Rio Hudson, ao norte da cidade de Nova York, há um parque estadual em Croton Point, lugar para fazer piqueniques, jogar bola e olhar para o soberbo (e poluído) Hudson. No próprio Croton Point há – ou melhor, havia – uma curiosidade geológica: uma praia de cerca de treze metros de extensão onde uma argila cinza-azulada, depositada pela glaciação, mais a ação das correntes do rio e o sol formaram cachorros de argila. São esculturas naturais endurecidas, quase tão densas quanto pedra, e de um tipo dos mais curiosos, com surpreendentes formas arredondadas singelas e sutis e maravilhosas misturas de tons de um esplendor comparável aos das orientais. Há poucos lugares no mundo com esse tipo de escultura natural.

Várias gerações de estudantes de geologia de Nova York e também quem ia lá para fazer piqueniques, jogar bola, e crianças encantadas catavam em meio aos cachorros de argila os seus favoritos e os levavam para casa. E sempre a argila, o rio e o sol voltavam a produzir mais e mais e mais esculturas, incansavelmente, cada qual ímpar.

Ocasionalmente, através dos anos, depois de um professor de geologia ter-me mostrado os cachorros de argila, voltei lá para fazer a minha busca. Poucos anos atrás, meu marido e eu levamos as crianças a Croton Point para que elas achassem algumas esculturas e soubessem como eram feitas. Porém, estávamos com uma estação de atraso em relação àqueles que aperfeiçoam a natureza. O aclive de argila que formava essa praia única havia sido removido. No lugar dele havia um muro de arrimo rústico e uma extensão dos gramados do parque. (O parque fora ampliado… por estatística.) Ao cavar aqui e ali na grama nova – porque nos é dado profanar as profanações do próximo, assim como qualquer um –, achamos pedaços dos cachorros de argila, esmagados pelos tratores, a última prova de um processo natural que talvez tenha sido extinto para sempre.

Quem preferiria essa suburbanização insípida às maravilhas eternas? Que espécie de diretor de parque permitiria um vandalismo desses contra a natureza? É a manifestação de um tipo de mentalidade bastante conhecido: a mentalidade que só vê desordem onde existe a mais complexa e singular das ordens; o mesmo tipo de mentalidade que vê apenas desordem na vida das ruas das cidades e fica ansioso por destruí-la, padronizá-la, transformá-la em subúrbio.

As duas respostas estão relacionadas: as cidades, criadas e usadas pelas criaturas que amam as cidades, são menosprezadas por essas mentes tacanhas por não terem a imagem amena das cidades suburbanizadas. Outros aspectos da natureza são também menosprezados porque não têm a imagem amena da natureza suburbanizada. O sentimentalismo para com a natureza desnatura tudo aquilo que toca.

As grandes cidades e as zonas rurais podem conviver muito bem. As cidades grandes precisam de zonas rurais próximas. E a zona rural – do ponto de vista do homem – precisa das grandes cidades, com todas as suas variadas oportunidades e sua produtividade, de modo que os seres humanos possam ter condições de prezar o restante do mundo natural em vez de amaldiçoá-lo.

O ser humano é, em si, difícil, e portanto todos os tipos de coletividades (exceto as cidades imaginárias) têm problemas. As grandes cidades têm dificuldades em abundância, porque têm pessoas em abundância. Mas as cidades cheias de vida não são impotentes para combater mesmo os problemas mais difíceis. Não são vítimas passivas de uma sucessão de circunstâncias, assim como não são a contrapartida maléfica da natureza.

As cidades vivas têm uma estupenda capacidade natural de compreender, comunicar, planejar e inventar o que for necessário para enfrentar as dificuldades. Talvez o exemplo mais notável dessa capacidade seja a conquista das grandes cidades com relação às doenças. As cidades já foram devastadas por doenças, mas as venceram magnificamente. Todo o aparato da cirurgia, da higiene, da microbiologia, da química, das telecomunicações, das medidas de saúde pública, dos hospitais-escola e de pesquisa, das ambulâncias e similares, de que dependem não só as pessoas das cidades como as de fora delas na guerra sem fim contra a mortalidade prematura, são fundamentalmente conquistas das grandes cidades e seriam inconcebíveis sem elas. A saúde a mais, a produtividade, a soma de talentos, que permitem à sociedade sustentar esses avanços, são produto da nossa organização em cidades e especialmente em cidades grandes e densas.

Pode ser romântico procurar remédios para os males da sociedade nos lugares monótonos e rústicos das cercanias, ou entre pessoas provincianas simplórias, imaculadas, se é que elas existem, mas isso é perda de tempo. Alguém imagina que, na prática, as respostas para quaisquer das grandes questões que nos afligem hoje se encontrem nos núcleos urbanos homogêneos?

As cidades monótonas, inertes, contêm, na verdade, as sementes de sua própria destruição e um pouco mais. Mas as cidades vivas, diversificadas e intensas contêm as sementes de sua própria regeneração, com energia de sobra para os problemas e as necessidades de fora delas.

1. Por ex., “casualidade caótica”, “caos petrificado” etc.

2. Por isso, os “construtores” com especialização limitada em “habitação” são um absurdo vocacional. Tal profissão só faria sentido se se admitisse que a “habitação” em si tem efeitos e qualidades importantes e generalizados. Não tem.