A necessidade de quadras curtas

CONDIÇÃO 2: A maioria das quadras deve ser curta; ou seja, as ruas e as oportunidades de virar esquinas devem ser frequentes.

Esse é o capítulo 9
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As vantagens das quadras curtas são simples.

Pense, por exemplo, na situação de uma pessoa que more numa quadra longa, como a Rua 88 Oeste, em Manhattan, entre a Rua Central Park Oeste e a Avenida Columbus. Ela percorre mais de 250 metros, no sentido oeste, para chegar ao comércio da Avenida Columbus ou tomar um ônibus, e segue no sentido leste para chegar ao parque, pegar o metrô ou outro ônibus. É bem capaz que essa pessoa passe anos sem andar pelas quadras vizinhas entre as ruas 88 e 89.

Isso ocasiona um problema sério. Já vimos que as vizinhanças isoladas, separadas, têm tudo para ser desassistidas pela população. É possível que aquela pessoa disponha de vários argumentos para não acreditar que as ruas 88 e 89 ou seus moradores tenham alguma afinidade com ela. Para se convencer do contrário, ela precisa ir além dos indícios da vida diária.

Com relação à sua vizinhança, o efeito dessas ruas autoisoladoras sobre a economia é igualmente inibidor. As pessoas dessa rua e das ruas próximas conseguem formar uma combinação de usos econômicos só onde seus trajetos longos e separados se cruzam e se unem num fluxo. Neste caso, o local mais próximo onde isso pode acontecer é a Avenida Columbus.

Justamente por ser o único local próximo onde dezenas de milhares de pessoas vindas dessas quadras estagnadas, longas, represadas se encontram e formam uma combinação de usos, a Avenida Columbus tem um tipo próprio de monotonia – lojas sem fim e deprimente predomínio de comércio padronizado. Nessa vizinhança há tão pouco espaço de frente para o comércio se instalar, que ele precisa se apertar, independentemente de seu tipo, do grau de sustentação de que necessite ou do grau de facilidade (a distância em relação aos fregueses) que lhe seja comum. Bem ao lado estendem-se as longas faixas de insipidez e trevas – a Grande Praga da Monotonia, com uma bocarra vistosa após longos intervalos: um retrato típico de áreas urbanas fracassadas.

exemplo deslocamento urbano quadras quarteirao longo

Essa rigorosa segregação física dos usuários habituais de determinada rua dos usuários habituais da rua seguinte estende-se, é claro, aos visitantes. Por exemplo, vou, há mais de quinze anos, a um dentista na Rua 86 Oeste, bem perto da Avenida Columbus. Em todo esse tempo, embora eu tenha percorrido de norte a sul a Columbus e de norte a sul a Central Park Oeste, nunca utilizei nem a Rua 85 Oeste nem a Rua 87 Oeste. Não só seria inconveniente, como tampouco faria sentido. Se levo as crianças, depois do dentista, ao planetário, na rua 81 Oeste, entre a Columbus e a Central Park Oeste, só existe um trajeto direto: descer a Columbus e entrar na 81.

Vamos imaginar, em vez disso, que essas quadras longas de leste a oeste fossem cortadas por uma rua – não um “calçadão” inútil, como aqueles que se encontram em profusão nos conjuntos habitacionais de superquadras, mas uma rua contendo prédios onde as coisas pudessem ter início e crescessem em pontos economicamente viáveis: lugares para comprar, comer, ver coisas, tomar uma bebida. Com essa outra rua, aquela pessoa da Rua 88 não mais precisaria percorrer um trajeto monótono, sempre igual, até determinado local. Ela teria uma escolha ampla de percursos. A vizinhança literalmente se abriria para ela.

Aconteceria o mesmo para as pessoas que moram em outras ruas e para aquelas mais próximas da Columbus que vão a algum lugar do parque ou ao metrô. Em vez de serem isolados, esses trajetos se cruzariam e entrelaçariam.

A oferta de pontos viáveis para o comércio cresceria consideravelmente, da mesma forma que a distribuição e a comodidade de sua localização. Se um terço das pessoas da Rua 88 for capaz de justificar a existência de uma banca de jornais ou de uma loja de objetos usados, parecida com a do Bernie, na esquina da nossa casa, e o mesmo se poderia dizer das pessoas das ruas 87 e 89, haverá então a possibilidade de acontecer o mesmo nas novas esquinas. Como essas pessoas nunca conseguem suprir o conjunto de suas necessidades nas redondezas, a não ser percorrendo um único trajeto, essa distribuição de serviços, de oportunidades econômicas e de vida pública torna-se impossível.

No caso das quadras longas, mesmo as pessoas que estejam na vizinhança pelas mesmas razões são mantidas tão afastadas que se impede a formação de combinações razoavelmente complexas de usos urbanos cruzados. Quando se trata de usos principais discrepantes, as quadras longas impedem as misturas produtivas exatamente da mesma maneira. Elas automaticamente separam as pessoas por trajetos que raras vezes se cruzam, de modo que usos diversos, geograficamente bem próximos de outros, são literalmente bloqueados.

O contraste entre a estagnação dessas quadras longas e a fluência de usos que uma rua a mais propiciaria não é forçado. Temos um exemplo dessa transformação no Rockefeller Center, que ocupa três das quadras longas entre a Quinta e a Sexta Avenida. O Rockefeller Center tem essa rua a mais.

Peço aos leitores que o conhecem que o imaginem sem essa rua adicional no sentido norte-sul, a Rockefeller Plaza. Se os prédios da instituição fossem contínuos nas ruas laterais, desde a Quinta Avenida até a Sexta Avenida, ela não mais seria um centro de atividades. Nem poderia ser. Seria um grupo de ruas isoladas, que dariam apenas na Quinta e na Sexta Avenida. Nem o mais engenhoso projeto em outros aspectos conseguiria integrá-lo, porque é a fluência de usos e a confluência de trajetos, não a homogeneidade arquitetônica, que fazem as vizinhanças constituírem combinações de usos urbanos, mesmo que essas áreas sejam predominantemente de trabalho ou de moradias.

exemplo deslocamento urbano quadras quarteirao curto

No sentido norte, o fluxo das ruas do Rockefeller Center estende-se, cada vez menos intenso, até a Rua 53, por causa de um corredor e de uma galeria que cortam as quadras e são usados como prolongamentos da rua. No sentido sul, seu efeito como combinação de usos estanca abruptamente na Rua 48. A rua seguinte, a 47, não tem transversais. É principalmente uma rua de comércio atacadista (o centro do atacado de pedras preciosas), um uso surpreendentemente marginal numa rua que fica perto de uma das maiores atrações da cidade. Porém, da mesma forma que os pedestres das ruas 87 e 88, os das ruas 47 e 48 podem passar anos sem frequentar as outras ruas.

Por natureza, as quadras longas neutralizam as vantagens potenciais que as cidades propiciam à incubação, à experimentação e a numerosos empreendimentos pequenos ou específicos, na medida em que estes precisam de cruzamentos muito maiores de pedestres para atrair fregueses ou clientes. As quadras longas também frustram a tese de que, se se espera que as misturas de usos urbanos sejam mais do que uma abstração nas plantas, elas devem provocar a presença de pessoas diferentes, com propósitos diferentes, em horários distintos, mas usando as mesmas ruas.

Das centenas de longas quadras de Manhattan, umas parcas oito ou dez estão espontaneamente ganhando vida com o passar do tempo ou se tornando atraentes.

  1. interessante observar em que locais a diversidade e a popularidade superabundantes do Greenwich Village se espalharam e onde foram contidas. Os aluguéis vêm subindo progressivamente no Greenwich Village, e os futurologistas têm previsto o renascimento do outrora elegante Chelsea, logo ao norte, por pelo menos vinte e cinco anos. Essa predição parece ter lógica porque a localização do Chelsea, suas misturas, seus edifícios e sua densidade de moradias por quilômetro quadrado são quase idênticos aos do Greenwich Village, e também porque há uma mistura de trabalho e residências. Mas o renascimento nunca aconteceu. Ao contrário, o Chelsea definha atrás das barreiras das quadras longas e isoladoras, decaindo mais rápido na maioria delas do que se recupera em outras. Atualmente está havendo uma ampla erradicação de cortiços, e nesse processo o bairro tem ganho quadras ainda maiores e mais monótonas. (A pseudociência do urbanismo beira a neurose em sua determinação de reproduzir o fracasso empírico e ignorar o sucesso empírico.) Ao mesmo tempo, o Greenwich Village espraiou-se e levou sua diversidade e atratividade bem para o leste, esgueirando-se por um gargalo estreito entre áreas de concentração industrial, seguindo infalívelmente a rota das quadras curtas e o uso fluente das ruas – muito embora as construções nessa direção não sejam tão atraentes ou aparentemente adequadas quanto as do Chelsea. Esse movimento numa direção e o estancamento em outra não é caprichoso nem misterioso, nem “obra caótica do acaso”. É uma reação realista àquilo que funciona melhor economicamente para a diversidade urbana e àquilo que não funciona.

Outro “mistério” permanente surgido em Nova York é por que a remoção da via férrea elevada sobre a Sexta Avenida, no West Side, provocou tão poucas mudanças e alcançou tão pouca popularidade e por que a remoção da via férrea elevada sobre a Terceira Avenida, no East Side, desencadeou tantas mudanças e ocasionou tanta popularidade. Não obstante, as quadras longas fizeram do West Side uma monstruosidade econômica, principalmente porque elas correm em direção ao centro da ilha, exatamente onde as combinações de usos mais produtivas do West Side deveriam ter-se formado, se tivessem tido oportunidade. No East Side, há quadras curtas em direção ao centro da ilha, exatamente onde as mais produtivas combinações de usos tiveram oportunidade de se formar e crescer1.

Quase todas as travessas curtas do East Side, desde a Rua 60 até a 89, são tidas como exclusivamente residenciais. É interessante notar que estabelecimentos especializados, como livrarias ou costureiros ou restaurantes, em geral se instalaram habitualmente, embora nem sempre, perto das esquinas. O trecho equivalente do West Side não serve para livrarias nem nunca serviu. E não porque todos os sucessivos moradores, insatisfeitos e sempre de mudança, tivessem aversão à leitura, ou fossem muito pobres para comprar livros. Ao contrário, o West Side está cheio de intelectuais, e sempre esteve. Talvez seja um mercado natural para livros tão bom quanto o Greenwich Village e talvez um mercado natural melhor que o East Side. Devido a suas quadras longas, o West Side nunca foi capaz de formar as complexas combinações de usos habituais de ruas necessárias para sustentar a diversidade urbana.

Ao perceber que as pessoas tentam encontrar uma passagem norte-sul adicional nas quadras muito longas entre a Quinta e a Sexta Avenida, um repórter do New Yorker tentou fazer um caminho improvisado através das quadras, da Rua 33 até o Rockefeller Center. Descobriu meios aceitáveis, embora esdrúxulos, de pegar atalhos através de nove quadras, por lojas e galerias que cortam de lado a lado e pelo Bryant Park, atrás da Biblioteca da Rua 42. Mas ele precisou espremer-se entre cercas, subir por janelas e persuadir zeladores para atravessar quatro das quadras, e em duas quadras teve de fugir à pauta inicial, passando por corredores do metrô.

Nos distritos que se tornam prósperos ou atraentes, as ruas nunca são feitas para desaparecer. Muito pelo contrário. Onde é possível, elas se multiplicam. Assim, no distrito da Rittenhouse Square, em Filadélfia, e em Georgetown, Distrito de Colúmbia, as vielas em meio aos quarteirões transformaram-se em ruas com prédios de frente para elas, e os pedestres as utilizam como ruas. Em Filadélfia, elas geralmente incluem comércio.

Nem em outras cidades, que não Nova York, as quadras longas têm virtudes. Em Filadélfia, há um bairro em que os proprietários simplesmente deixam os prédios ruir, numa área entre o centro e a maior faixa de conjuntos habitacionais da cidade. Há muitas razões para esse bairro chegar a essa situação irremediável, incluindo a proximidade da área urbana revitalizada com a desintegração social e a periculosidade que ela acarreta, mas obviamente o bairro não pode tirar proveito de sua estrutura física. A quadra-padrão de Filadélfia é de 15 mil metros quadrados (divididas pelas vielas que são futuras ruas, onde a cidade mais prospera). Nesse bairro arruinado, parte do “esbanjamento” de ruas foi eliminada no traçado original; suas quadras têm 210 metros de extensão. Ele estagnou, obviamente, desde o momento em que foi construído. Em Boston, o North End, que é um prodígio de ruas “em excesso” e de usos cruzados fluentes, tem recuperado heroicamente os cortiços, a despeito da apatia do governo e dos obstáculos financeiros.

O mito de que um grande número de ruas é um “esbanjamento”, um dos dogmas do planejamento urbano ortodoxo, provém sem dúvida dos teóricos da Cidade-Jardim e da Ville Radieuse, que execravam o uso do solo para ruas porque queriam que o solo se transformasse em áreas verdes planejadas. Esse mito é particularmente prejudicial, porque mexe com nossa capacidade intelectual de perceber uma das causas de tanta estagnação e fracasso mais triviais, mais evitáveis e mais facilmente corrigíveis.

Os projetos residenciais de superquadras são passíveis de todas as deficiências das quadras longas, frequentemente de forma ampliada, e isso também ocorre quando são cortados por calçadões e esplanadas e portanto possuem, teoricamente, ruas a intervalos razoáveis, pelas quais as pessoas podem transitar. Essas ruas não têm sentido porque raramente há um motivo plausível para serem usadas por um número razoável de pessoas. Mesmo vistos de fora, levando em conta apenas a mudança de perspectivas visuais quando se vai de um lugar a outro, esses caminhos não têm sentido porque todos os cenários são essencialmente idênticos. Essa situação é o oposto daquela que o repórter do New Yorker observou nas quadras entre a Quinta e a Sexta Avenida. Lá as pessoas tentam encontrar ruas de que necessitam mas que não existem. Nas superquadras, as pessoas podem evitar as esplanadas e as travessas, que existem mas são inúteis.

Ressalto esse problema não apenas para criticar de novo as anomalias do planejamento urbano, mas para afirmar que ruas frequentes e quadras curtas são valiosas por propiciar uma rede de usos combinados e complexos entre os usuários do bairro. Ruas frequentes não são um fim em si mesmas. Elas são um meio para um fim. Se esse fim – gerar diversidade e catalisar os planos de muitas pessoas além dos planejadores – for limitado por um zoneamento repressivo ou por construções padronizadas que obstruam o livre desenvolvimento da diversidade, não se obterá nada de muito significativo com as quadras curtas. Como as combinações de usos principais, as ruas frequentes efetivamente ajudam a gerar diversidade só pela maneira como atuam. O modo como funcionam (atraindo para si misturas de usuários) e os resultados que elas proporcionam (o crescimento da diversidade) estão intimamente relacionados. A relação é recíproca.

1. Indo da Quinta Avenida no sentido oeste, as primeiras três quadras, e em certos lugares quatro, têm mais de 250 metros de extensão, exceto no cruzamento com a Broadway em diagonal. Indo da Quinta Avenida no sentido leste, as primeiras quatro quadras variam de 130 a 140 metros. Na Rua 70, para escolher um ponto aleatório onde os dois lados da ilha são divididos pelo Central Park, os 800 metros de extensão da linha de construções entre a Rua Central Park Oeste e a Avenida West End são cortados por somente duas vias. No lado leste, uma extensão equivalente de linha de construções, da Quinta Avenida até pouco depois da Segunda Avenida, é cortada por cinco vias. O trecho do East Side com cinco cruzamentos é imensamente mais movimentado do que o do West Side, com dois.