Apresentação da edição brasileira e introdução ao livro

“Este livro é um ataque.” São essas as primeiras palavras de Jane Jacobs neste livro que completa meio século como um dos mais influentes estudos urbanos de todos os tempos. Lançado nos Estados Unidos em 1961, o livro veio somar-se às críticas aos princípios funcionalistas do urbanismo que foram se intensificando ao longo da década de 1950 e acabaram levando à dissolução do CIAM/Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, instituição criada na Europa três décadas antes com o objetivo de defender e difundir o ideário da arquitetura e do urbanismo modernos.

Esse é o capítulo 1
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Na verdade, o livro é escrito naquele momento-limite em que Brasília está sendo construída – com base num plano urbanístico fundado em muitos dos princípios formulados no âmbito do CIAM – ao mesmo tempo que na Europa e nos Estados Unidos vão se adensando as críticas ao que Jacobs chama aqui de “urbanismo ortodoxo”. Não por acaso, o foco deste livro está justamente na ofensiva aberta a um dos princípios básicos da Carta de Atenas, documento-síntese do pensamento urbanístico do CIAM: a ideia de setorização, ou organização espacial da cidade segundo funções predeterminadas. Contra esse princípio, Jacobs defende a diversidade (mescla de usos e usuários, bem como de edificações de idades e estados de conservação variados) como único meio capaz de garantir a vitalidade urbana. E o que é mais importante: chega a isso não por meio de esquemas teórico-conceituais ou diagnósticos exaustivos e pretensamente científicos, mas sim observando a cidade do ponto de vista de quem a pratica cotidianamente.

A beleza maior deste livro está justamente na capacidade mostrada pela autora – uma jornalista autodidata – para observar de perto, “com o mínimo de expectativa possível”, as “coisas comuns e cotidianas” que compõem o seu dia a dia em Nova York. É a moradora do Greenwich Village, afinal, que escreve um dos trechos mais cativantes do livro, descrevendo a movimentação das pessoas na calçada da sua rua (a Hudson Street, na quadra recentemente rebatizada como Jane Jacobs Way). Feito de gestos pequenos, anônimos e rotineiros – as crianças que vão para a escola, o comerciante que abre a loja, os estranhos que frequentam o bar, a senhora (a própria Jacobs) que põe o lixo na rua –, esse “balé da calçada” é executado dia e noite, sem nunca se repetir, e torna-se em grande parte responsável pela segurança da rua, nota Jacobs. Aparentemente despretensiosos e aleatórios, os contatos nas ruas também são decisivos para o florescimento da vida pública, diz ela, pois forçam o aparecimento da diferença e acabam estimulando a tolerância e a convivência pacífica entre estranhos.

Sob o elogio da rua e do espírito comunitário a autora não guarda, porém, nenhum sentimentalismo, e muito menos lembranças nostálgicas de um mundo pré-industrial, baseado no campo. Jacobs recusa e ridiculariza o modelo das Cidades-jardins, idealizado por Ebenezer Howard no final do século XIX e transplantado com entusiasmo – e muitas adaptações oportunas – aos subúrbios surgidos na periferia das grandes cidades americanas no pós-guerra. Tampouco aceita a perspectiva “mórbida” de Lewis Munford, com a sua condenação drástica, mas um tanto ingénua, da megalópolis/necrópolis. Nada, em suma, de descentralização, reintegração com a natureza, nem de um provincianismo que condena a cidade e só contribui para a sua desvitalização. E menos ainda o “planejamento anticidade” de Le Corbusier, expresso em seu projeto para a Ville Radieuse, uma cidade imaginária verticalizada, compondo um gigantesco parque ainda tributário, segundo Jacobs, do bucolismo ilusório da Cidade-jardim.

  1. uma vida autenticamente e intensamente urbana que Jacobs defende; e, mais que isso, a “vida das grandes cidades americanas”, conforme explicitado no título original. Assim, se a sua perspectiva pode ser estendida a outras cidades, é para a metrópole americana que Jacobs olha, efetivamente. Isto é, não para a cidade europeia, formada com base numa tradição urbana a ser eventualmente recuperada, e sim para uma cidade jovem, dinâmica e a-histórica por excelência, como Nova York, Baltimore ou Chicago. E por isso mesmo o automóvel, de efeitos indiscutivelmente tão nocivos sobre a cidade, é considerado pela autora “menos a causa que um sintoma”. No caso, da incompetência dos planejadores urbanos, que “não sabem o que fazer com os automóveis nas cidades porque não têm a mínima ideia de como projetar cidades funcionais e saudáveis – com ou sem automóveis”.

O fato é que com este texto seminal, associado a seu ativisimo político, Jacobs contribuiu de maneira decisiva para o desenvolvimento de alternativas a projetos de renovação urbana baseados no arrasamento de áreas consolidadas e sua substituição por viadutos, vias expressas e conjuntos habitacionais de baixa qualidade (que tiveram como paradigma os projetos de Robert Moses para Nova York). E se, nas últimas décadas, novas configurações, conflitos e dinâmicas urbanas emergiram, acirrando ainda mais a crise do urbanismo e exigindo uma contínua redefinição do próprio conceito de cidade, vários argumentos contidos neste livro continuam se mostrando espantosamente ricos, e resistentes.

ANA LUIZA NOBRE

junho de 2011


Introdução ao livro

Este livro é um ataque aos fundamentos do planejamento urbano e da reurbanização ora vigentes. É também, e principalmente, uma tentativa de introduzir novos princípios no planejamento urbano e na reurbanização, diferentes daqueles que hoje são ensinados em todos os lugares, de escolas de arquitetura e urbanismo a suplementos dominicais e revistas femininas, e até mesmo conflitantes em relação a eles. Meu ataque não se baseia em tergiversações sobre métodos de reurbanização ou minúcias sobre modismos em projetos. Mais que isso, é uma ofensiva contra os princípios e os objetivos que moldaram o planejamento urbano e a reurbanização modernos e ortodoxos.

Ao apresentar princípios diferentes, escreverei principalmente sobre coisas comuns e cotidianas, como, por exemplo, que tipos de ruas são seguros e quais não são; por que certos parques são maravilhosos e outros são armadilhas que levam ao vício e à morte; por que certos cortiços continuam sendo cortiços e outros se recuperam mesmo diante de empecilhos financeiros e governamentais; o que faz o centro urbano deslocar-se; o que é – se é que existe – um bairro, e que função – se é que há alguma – desempenham os bairros nas grandes cidades. Resumindo, escreverei sobre o funcionamento das cidades na prática, porque essa é a única maneira de saber que princípios de planejamento e que iniciativas de reurbanização conseguem promover a vitalidade socioeconômica nas cidades e quais práticas e princípios a inviabilizam.

Há um mito nostálgico de que bastaria termos dinheiro suficiente – a cifra geralmente citada fica em torno de uma centena de bilhões de dólares – para erradicar todos os nossos cortiços em dez anos, reverter a decadência dos grandes bolsões apagados e monótonos que foram os subúrbios de ontem e de anteontem, fixar a classe média itinerante e o capital circulante de seus impostos e talvez até solucionar o problema do trânsito.

Mas veja só o que construímos com os primeiros vários bilhões: conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos de delinquência, vandalismo e desesperança social generalizada, piores do que os cortiços que pretendiam substituir; conjuntos habitacionais de renda média que são verdadeiros monumentos à monotonia e à padronização, fechados a qualquer tipo de exuberância ou vivacidade da vida urbana; conjuntos habitacionais de luxo que atenuam sua vacuidade, ou tentam atenuá-la, com uma vulgaridade insípida; centros culturais incapazes de comportar uma boa livraria; centros cívicos evitados por todos, exceto desocupados, que têm menos opções de lazer do que as outras pessoas; centros comerciais que são fracas imitações das lojas de rede suburbanas padronizadas; passeios públicos que vão do nada a lugar nenhum e nos quais não há gente passeando; vias expressas que evisceram as grandes cidades. Isso não é reurbanizar as cidades, é saqueá-las.

Sob as aparências, essas façanhas mostram-se ainda mais pobres que suas pobres pretensões. Raramente favorecem as áreas urbanas à sua volta, como teoricamente deveriam. Essas áreas amputadas são normalmente acometidas de gangrena fulminante. Para alojar pessoas desse modo planejado, pregam-se etiquetas de preço na população, e cada coletividade etiquetada e segregada passa a viver com suspeição e tensão crescentes em relação à cidade circundante. Quando duas ou mais dessas ilhas hostis são justapostas, denomina-se o resultado “bairro equilibrado”. Os shopping centers monopolistas e os monumentais centros culturais, com o espalhafato das relações públicas, encobrem a exclusão do comércio – e também da cultura – da vida íntima e cotidiana das cidades.

Para que tais maravilhas sejam executadas, as pessoas estigmatizadas pelos planejadores são intimidadas, expropriadas e desenraizadas, como se eles fossem o poder dominante. Milhares e milhares de pequenos negócios são destruídos, e seus proprietários, arruinados, e dificilmente recebem qualquer compensação. Comunidades inteiras são arrasadas e lançadas ao vento, colhendo um cinismo, um ressentimento e um desespero difíceis de acreditar. Um grupo de sacerdotes de Chicago, escandalizados com os frutos da reurbanização planejada da cidade, perguntou:

Estaria Jó pensando em Chicago quando escreveu:

Há os que violam os limites do próximo (…) ignoram os necessitados, conspiram para oprimir os desamparados. Ceifam o campo que não lhes pertence, esbulham a vinha injustamente tomada ao seu dono (…)

Um clamor eleva-se das ruas da cidade, onde gemem, deitados os feridos (…)?

Se assim fosse, ele também teria em mente Nova York, Filadélfia, Boston, Washington, St. Louis, São Francisco e vários outros lugares. O raciocínio econômico da reurbanização atual é um embuste. A economia da reurbanização não se baseia unicamente no investimento racional através de subsídios públicos, como proclama a teoria da renovação urbana, mas também em vastos e involuntários subsídios, arrancados de vítimas locais indefesas. E os resultados da elevação de impostos nesses lugares, auferidos pelas municipalidades em resultado desse “investimento”, são uma miragem, um gesto lamentável e contraditório em relação às somas de dinheiro público cada vez maiores necessárias para combater a desintegração e a instabilidade que emanam da cidade cruelmente abalada. Os meios que a reurbanização planejada utiliza são tão deploráveis quanto seus fins.

Ao mesmo tempo, toda a arte e a ciência do planejamento urbano são incapazes de conter a decadência – e a falta de vitalidade que a precede – de porções cada vez maiores das cidades. Essa decadência não pode nem mesmo ser atribuída, como consolo, à falta de oportunidade de aplicar a arte do planejamento. Parece não importar muito se ela é ou não aplicada. Considere o exemplo da área de Morningside Heights, na cidade de Nova York. De acordo com a teoria do planejamento urbano, ela não deveria ter problema algum, já que possui áreas verdes em abundância, campus, playgrounds e outras áreas livres. Dispõe de muitos gramados. Ocupa um terreno elevado e agradável, com magnífica vista do rio. É um núcleo educacional renomado, com instituições esplêndidas – a Universidade de Colúmbia, o Union Theological Seminary, a Juilliard School of Music e mais meia dúzia de outras tantas, que gozam de grande respeitabilidade. Desfruta de bons hospitais e igrejas. Não tem indústrias. Suas ruas são zoneadas com o objetivo de evitar que “usos incompatíveis” invadam a privacidade dos sólidos e espaçosos apartamentos de classe média e alta. Ainda assim, no início dos anos 50, Morningside Heights transformou-se com tal rapidez em zona de cortiços – do tipo no qual as pessoas sentem medo de andar nas ruas – que a situação desencadeou uma crise para as instituições. Elas e os setores de planejamento da prefeitura reuniram-se, aplicaram um pouco mais da teoria urbanística, demoliram a maior parte da área degradada local e construíram em seu lugar um empreendimento cooperativado de renda média dotado de shopping center e um conjunto habitacional, tudo entremeado de áreas livres, luz, sol e paisagismo. Ele foi aclamado como uma excelente demonstração de recuperação urbana.

Depois disso, o Morningside Heights decaiu ainda mais depressa.

Esse exemplo não é nem injusto nem absurdo. Num número cada vez maior de cidades, tornam-se decadentes justamente as regiões onde menos se espera que isso aconteça, à luz da teoria do planejamento urbano. Fenômeno menos percebido mas igualmente significativo, num número cada vez maior de cidades, as regiões mais suscetíveis à decadência, segundo a mesma teoria, recusam-se a decair.

As cidades são um imenso laboratório de tentativa e erro, fracasso e sucesso, em termos de construção e desenho urbano. É nesse laboratório que o planejamento urbano deveria aprender, elaborar e testar suas teorias. Ao contrário, os especialistas e os professores dessa disciplina (se é que ela pode ser assim chamada) têm ignorado o estudo do sucesso e do fracasso na vida real, não têm tido curiosidade a respeito das razões do sucesso inesperado e pautam-se por princípios derivados do comportamento e da aparência de cidades, subúrbios, sanatórios de tuberculose, feiras e cidades imaginárias perfeitas – qualquer coisa que não as cidades reais.

Não é de estranhar a sensação de que os segmentos reurbanizados das cidades e os infindáveis novos empreendimentos que se espalham para além delas reduzem a área urbana e a rural a uma papa monótona e nada nutritiva. Em primeira, segunda, terceira e quarta mão, tudo provém da mesma gororoba intelectual, uma gororoba em que as qualidades, as necessidades, as vantagens e o comportamento das grandes cidades têm sido inteiramente confundidos com as qualidades, as necessidades, as vantagens e o comportamento de outros tipos de assentamentos menos ativos.

Não há nada que seja econômica ou socialmente inevitável tanto em relação ao declínio das cidades tradicionais, como em relação à recém-inventada decadência da nova urbanização inurbana. Ao contrário, nenhum outro aspecto da nossa economia e da nossa sociedade tem sido mais intencionalmente manipulado por todo um quarto de século com o fim de atingir exatamente o que conseguimos. Tem-se exigido um volume extraordinário de incentivos financeiros governamentais para obter esse nível de monotonia, esterilidade e vulgaridade. As várias décadas de discursos, textos e exortações de peritos serviram para convencer a nós e aos legisladores de que uma gororoba dessas deve fazer-nos bem, desde que esteja coberta de gramados.

Os automóveis costumam ser convenientemente rotulados de vilões e responsabilizados pelos males das cidades e pelos insucessos e pela inutilidade do planejamento urbano. Mas os efeitos nocivos dos automóveis são menos a causa do que um sintoma de nossa incompetência no desenvolvimento urbano. Claro que os planejadores, inclusive os engenheiros de tráfego, que dispõem de fabulosas somas em dinheiro e poderes ilimitados, não conseguem compatibilizar automóveis e cidades. Eles não sabem o que fazer com os automóveis nas cidades porque não têm a mínima ideia de como projetar cidades funcionais e saudáveis – com ou sem automóveis.

As necessidades dos automóveis são mais facilmente compreendidas e satisfeitas do que as complexas necessidades das cidades, e um número crescente de urbanistas e projetistas acabou acreditando que, se conseguirem solucionar os problemas de trânsito, terão solucionado o maior problema das cidades. As cidades apresentam preocupações econômicas e sociais muito mais complicadas do que o trânsito de automóveis. Como saber que solução dar ao trânsito antes de saber como funciona a própria cidade e de que mais ela necessita nas ruas? É impossível.

Talvez tenhamos nos tornado um povo tão displicente, que não mais nos importamos com o funcionamento real das coisas, mas apenas com a impressão exterior imediata e fácil que elas transmitem. Se for assim, há pouca esperança para nossas cidades e provavelmente para muitas coisas mais em nossa sociedade. Mas não acho que seja assim.

Especificamente no caso do planejamento urbano, é óbvio que uma grande quantidade de pessoas sérias e sinceras se preocupa profundamente com construção e renovação. Apesar de alguma corrupção e da considerável cobiça pela vinha do próximo, as intenções em meio às trapalhadas são, no cômputo geral, exemplares. Planejadores, arquitetos do desenho urbano e aqueles que os seguem em suas crenças não desprezam conscientemente a importância de conhecer o funcionamento das coisas. Ao contrário, esforçaram-se muito para aprender o que os santos e os sábios do urbanismo moderno ortodoxo disseram a respeito de como as cidades deveriam funcionar e o que deveria ser bom para o povo e os negócios dentro delas. Eles se aferram a isso com tal devoção, que, quando uma realidade contraditória se interpõe, ameaçando destruir o aprendizado adquirido a duras penas, eles colocam a realidade de lado.

Analise, por exemplo, a reação do planejamento urbano ortodoxo a um distrito de Boston chamado North End1. Trata-se de uma área tradicional, de baixa renda, que se mistura à indústria pesada da orla e é considerada pelas autoridades como a pior zona de cortiços de Boston e uma vergonha municipal. Possui características que todas as pessoas esclarecidas sabem ser nocivas porque diversos eruditos disseram que o são. O North End não somente se encontra colado à indústria como também, o que é pior, tem todos os tipos de atividades de trabalho e comércio complexamente misturados com as residências. Apresenta a mais alta densidade habitacional de Boston, considerando o solo destinado ao uso residencial, na verdade uma das mais altas concentrações entre todas as cidades americanas. Tem poucas áreas verdes. As crianças brincam na rua. Em lugar de superquadras, ou mesmo de quadras suficientemente longas, possui quadras curtas; no jargão urbanístico, a região é “maltraçada, com ruas em excesso”. Os edifícios são antigos. Tudo o que se possa imaginar está presumivelmente errado no North End. Em termos do planejamento urbano ortodoxo, trata-se do manual em três dimensões, de uma “megalópole” nos últimos estágios da deterioração. O North End é, portanto, uma tarefa recorrente dos estudantes de urbanismo e arquitetura do MIT e de Harvard, os quais invariavelmente se lançam, sob a orientação de seus professores, ao estudo da conversão do bairro em superquadras e passeios arborizados, extinguindo seus usos discrepantes, transformando-o num ideal de ordem e refinamento tão simples que poderia ser gravado na cabeça de um alfinete.

Há vinte anos, quando vi pela primeira vez o North End, suas construções – casas geminadas de tipos e tamanhos diferentes convertidas em apartamentos e edifícios residenciais de quatro ou cinco pavimentos, construídos para abrigar as levas de imigrantes vindos primeiro da Irlanda, depois da Europa Oriental e por fim da Sicília – eram superpovoadas, e o panorama geral era de um distrito muito maltratado e miseravelmente pobre.

Quando visitei o North End novamente em 1959, fiquei espantada com a mudança. Dezenas e mais dezenas de prédios haviam sido reformados. No lugar de colchões encostados às janelas havia venezianas e a aparência de tinta fresca. Muitas das casinhas reformadas acolhiam então apenas uma ou duas famílias, em vez das três ou quatro que as lotavam antes. Algumas das famílias desses prédios (como vim a saber mais tarde, ao conhecê-los por dentro) abriram mais espaço juntando dois dos antigos apartamentos, e tinham instalado banheiros, cozinhas novas e similares. Espiei por uma viela estreita, esperando encontrar pelo menos aí o velho e combalido North End, mas não: mais alvenaria de tijolos com acabamento esmerado, cortinas novas e som de música quando uma porta se abriu. Sem dúvida, esse foi o único distrito que já vi – pelo menos até hoje – no qual as laterais dos prédios junto a estacionamentos não ficaram sem acabamento ou mutiladas, mas foram rebocadas e pintadas com capricho, como que para serem admiradas. Misturadas aos prédios residenciais havia uma quantidade incrível de excelentes mercearias, assim como casas de estofamento, serralheria, carpintaria e processamento de alimentos. As ruas tinham vida com crianças brincando, gente fazendo compras, gente passeando, gente falando. Não fosse um frio dia de janeiro, certamente haveria pessoas sentadas às portas.

A atmosfera de alegria, companheirismo e bem-estar nas ruas era tão contagiante que comecei a indagar o endereço de pessoas só pelo prazer de puxar conversa. Eu tinha visitado vários lugares de Boston nos últimos dias, a maioria deles muito deprimentes, e esse me surpreendeu, com alívio, como o lugar mais sadio da cidade. Mas eu não conseguia imaginar de onde tinha vindo o dinheiro para a revitalização, porque hoje é quase impossível obter qualquer financiamento hipotecário considerável em distritos de cidades norte-americanas que não sejam de alta renda ou então arremedos de subúrbios. Para saber a resposta, fui a um bar-restaurante (onde acontecia uma conversa animada sobre pescaria) e chamei um planejador de Boston meu conhecido.

“Como é que você veio parar no North End?”, perguntou ele. “Dinheiro? Não houve nem dinheiro nem obras no North End. Não acontece nada por aqui. Quem sabe vá acontecer, mas até agora nada. Isto aqui é uma zona de cortiços!”

“A mim não parece”, disse eu.

“Ora, é a pior zona de cortiços da cidade! Tem sessenta e sete moradias em cada mil metros quadrados! É terrível admitir que temos uma coisa assim em Boston, mas é verdade.”

“Você tem outros dados sobre o bairro?”, perguntei.

“Sim, que engraçado! Figura entre os bairros da cidade que têm os menores índices de delinquência, doenças e mortalidade infantil. Puxa, esse pessoal deve estar fazendo barganhas. Vejamos… a população infantil está quase na média da cidade. A taxa de mortalidade é baixa, 8,8 por mil, contra uma taxa média da cidade de 11,2. O índice de mortes por tuberculose é bem baixo, menos de uma por 10 mil – não entendo como, é ainda mais baixa que a de Brookline. Nos velhos tempos, o North End era o lugar da cidade em que mais havia tuberculose, mas isso mudou. Bom, vai ver que são pessoas fortes. Claro que é uma zona de cortiços horrível.”

“Vocês precisavam ter mais zonas de cortiços como esta”, disse eu. “Não me diga que planejam demolir tudo. Você devia ficar aqui para aprender o máximo possível.”

“Eu sei o que você quer dizer”, disse ele. “Costumo vir até aqui só para andar pelas ruas e sentir esse clima maravilhoso das ruas, alegre. Olhe, se gostou daqui agora, precisa voltar no verão. Você ficaria doida por este lugar no verão. Mas claro que a gente vai ter de acabar reurbanizando o bairro. Temos de tirar essas pessoas das ruas.”

Aí está o curioso da coisa. Os instintos do meu amigo lhe diziam que o North End é um ótimo lugar, e suas estatísticas sociais reafirmavam isso. Porém, tudo o que ele havia aprendido como urbanista sobre o que é bom para o povo e bom para os bairros, tudo o que fazia dele um especialista, dizia-lhe que o North End tinha de ser um lugar ruim.

O principal banqueiro de crédito imobiliário de Boston, “um homem lá no topo da estrutura de poder”, a quem fui indicada por meu amigo para realizar uma entrevista sobre dinheiro, confirmou-me o que eu soube, nesse ínterim, das pessoas do North End. O dinheiro não tinha vindo pela graça do grande sistema bancário norte-americano, que atualmente sabe distinguir um cortiço tão bem quanto os urbanistas. “Não tem sentido emprestar dinheiro no North End”, disse o banqueiro. “É um cortiço! E ainda está recebendo imigrantes! Além do mais, na época da Depressão houve um número enorme de hipotecas protestadas; uma ficha ruim.” (Eu também ouvira falar disso, nesse meio-tempo, e de como as famílias tinham trabalhado e juntado recursos para comprar de novo alguns desses prédios hipotecados.)

O mais alto empréstimo hipotecário concedido nesse distrito de cerca de 15 mil habitantes, no quarto de século a contar da Grande Depressão, foi de 3 mil dólares, revelou o banqueiro, “e para bem poucos deles”. Houve outros de mil e de 2 mil dólares. A obra de revitalização foi quase toda financiada com a renda de negócios e aluguéis do próprio distrito, que foi reinvestida, e com o trabalho de mutirão dos moradores e seus parentes.

Nesse momento eu já sabia que a impossibilidade de pedir empréstimos para melhorias era um problema que exasperara os moradores do North End e que, além do mais, alguns deles se sentiam incomodados pelo fato de parecer impossível construir prédios novos no local, a não ser ao preço de eles próprios, e toda a comunidade, serem expulsos, de acordo com o sonho dos estudantes de um Éden urbano, destino que eles sabiam não ser só teórico, pois quase havia destruído completamente um distrito vizinho com características sociais similares – embora fisicamente maior –, chamado West End. Eles estavam preocupados também por saber que a tática de remendar não podia durar eternamente. “Existe alguma possibilidade de empréstimo para novas construções no North End?”, perguntei ao banqueiro.

“Não, absolutamente nenhuma!”, respondeu, denotando impaciência com minha estupidez. “Aquilo é uma zona de cortiços!”

Os banqueiros, assim como os planejadores, agem de acordo com as teorias que têm sobre as cidades. Eles chegaram a elas pelas mesmas fontes intelectuais dos planejadores. Os banqueiros e os oficiais administrativos que garantem hipotecas não inventam teorias de planejamento, nem mesmo, surpreendentemente, uma doutrina econômica a respeito das cidades. Hoje eles são esclarecidos e tiram suas ideias dos idealistas, com uma geração de atraso. Já que a teoria do planejamento urbano não assimilou ideias novas importantes por bem mais que uma geração, urbanistas, financistas e burocratas praticamente se equiparam hoje em dia.

Falando em termos mais diretos, todos eles se encontram no mesmo estágio de elaborada superstição em que se encontrava a medicina no começo do último século, quando os médicos acreditavam na sangria como recurso para purgar os humores nocivos, os quais, achava-se, provocavam a doença. Com relação à sangria, foram necessários anos de aprendizado para determinar precisamente quais veias, com quais procedimentos, deveriam ser abertas, de acordo com quais sintomas. Montou-se uma complexa superestrutura técnica, e detalhada com tal cinismo, que a literatura a respeito ainda parece quase plausível. Todavia, devido ao fato de as pessoas, ainda que inteiramente imersas em descrições da realidade que a contradigam, estarem ainda mais raramente privadas do poder de observação e discernimento, a ciência da sangria, durante a maior parte de seu longo domínio, parece ter sido temperada em geral com certa dose de bom senso. Ou foi temperada até que atingisse o auge da técnica nos jovens Estados Unidos, mais que em outros lugares. A sangria foi uma febre aqui. Teve no Dr. Benjamin Rush um defensor de enorme influência, ainda reverenciado como o maior estadista médico do nosso período revolucionário e federalista e um gênio na gestão da saúde: o Dr. Rush-Faz. Entre as coisas que ele fez, algumas boas e úteis, estão aprimorar, praticar, ensinar e difundir o costume da sangria nos casos em que a prudência e a compaixão tinham restringido seu uso. Ele e seus alunos drenavam o sangue de crianças bem pequenas, de tuberculosos, dos muito idosos, de quase todos aqueles que tivessem a infelicidade de adoecer em sua área de influência. Suas práticas radicais provocaram alarme e horror nos médicos flebotomistas europeus. Apesar disso, ainda em 1851, uma comissão designada pela Assembleia Legislativa de Nova York corroborou o uso intensivo da sangria. Com contundência, a comissão ridicularizou e censurou um médico, William Turner, que teve a audácia de escrever um panfleto criticando os métodos do Dr. Rush e definindo “o procedimento de tirar sangue de doentes como contrário ao senso comum, à experiência geral, às mentes esclarecidas e às leis manifestas da Divina Providência”. Os doentes precisavam ganhar forças e não perder sangue, afirmou o Dr. Turner, posteriormente obrigado a calar-se.

Analogias médicas, transpostas para os organismos sociais, tendem ao artificialismo, e não há como confundir a química dos mamíferos com o que acontece numa cidade. Mas são válidas, sim, as analogias sobre o que se passa no cérebro de pessoas sérias e cultas que lidam com fenômenos complexos, não os compreendem e tentam contentar-se com uma pseudociência. Como na pseudociência da sangria, também na pseudociência da reurbanização e do planejamento urbano, anos de aprendizado e uma infinidade de dogmas misteriosos e intrincados apoiaram-se num alicerce de absurdos. Os instrumentos técnicos foram constantemente aperfeiçoados. Naturalmente, com o tempo, homens dedicados e capazes, administradores admirados, depois de engolir as premissas falaciosas e dispondo dos instrumentos e da confiança pública, cometem logicamente excessos o mais destrutivos possível, que teriam sido anteriormente desaconselhados pela prudência e pela compaixão. A sangria só curava por acaso ou na medida em que desrespeitasse as regras, até que foi substituída pela difícil e complexa atividade de reunir, usar e comprovar pouco a pouco descrições verdadeiras da realidade, baseadas não em como ela deveria ser, mas em como ela é. A pseudociência do planejamento urbano e sua companheira, a arte do desenho urbano, ainda não se afastaram do conforto ilusório das vontades, das superstições conhecidas, do simplismo e dos símbolos e ainda não se lançaram na aventura de investigar o mundo real.

Assim, neste livro deveremos começar a aventurar-nos nós mesmos no mundo real, ainda que modestamente. A maneira de decifrar o que ocorre no comportamento aparentemente misterioso e indomável das cidades é, em minha opinião, observar mais de perto, com o mínimo de expectativa possível, as cenas e os acontecimentos mais comuns, tentar entender o que significam e ver se surgem explicações entre eles. É isso o que procuro fazer na primeira parte deste livro.

Um dos princípios mostra-se tão onipresente, e em formas tão variadas e tão complexas, que volto minha atenção para sua natureza na segunda parte deste livro, a qual constitui o cerne da minha argumentação. Esse princípio onipresente é a necessidade que as cidades têm de uma diversidade de usos mais complexa e densa, que propicie entre eles uma sustentação mútua e constante, tanto econômica quanto social. Os componentes dessa diversidade podem diferir muito, mas devem complementar-se concretamente.

Acho que as zonas urbanas malsucedidas são as que carecem desse tipo de sustentação mútua complexa e que a ciência do planejamento urbano e a arte do desenho urbano, na vida real e em cidades reais, devem tornar-se a ciência e a arte de catalisar e nutrir essas relações funcionais densas. Pelas evidências de que disponho, concluo que existem quatro condições primordiais para gerar diversidade nas grandes cidades e que o planejamento urbano, por meio da indução deliberada dessas quatro condições, pode estimular a vitalidade urbana (coisa que os planos dos urbanistas e os desenhos dos projetistas em si nunca conseguirão). Enquanto a Parte 1 enfoca principalmente o comportamento social da população urbana e é imprescindível para compreender as seguintes, a Parte 2 aborda principalmente o desempenho econômico das cidades e é a mais importante deste livro.

As cidades são locais fantasticamente dinâmicos, o que se aplica inteiramente a suas zonas prósperas, que propiciam solo fértil para os planos de milhares de pessoas. Na terceira parte do livro, examino alguns aspectos da decadência e da revitalização, à luz de como as cidades são usadas e como elas e sua população se comportam, na vida real.

A última parte deste livro sugere mudanças nas práticas de habitação, trânsito, projeto, planejamento e administração, e discute, por fim, o tipo de problema que as cidades apresentam – um problema de manejar a complexidade ordenada.

A aparência das coisas e o modo como funcionam estão inseparavelmente unidos, e muito mais nas cidades do que em qualquer outro lugar. Porém, quem está interessado apenas em como uma cidade “deveria” parecer e desinteressado de como funciona ficará desapontado com este livro. É tolice planejar a aparência de uma cidade sem saber que tipo de ordem inata e funcional ela possui. Encarar a aparência como objetivo primordial ou como preocupação central não leva a nada, a não ser a problemas.

No East Harlem de Nova York há um conjunto habitacional com um gramado retangular bem destacado que se tornou alvo da ira dos moradores. Uma assistente social que está sempre no conjunto ficou abismada com o número de vezes que o assunto do gramado veio à baila, em geral gratuitamente, pelo que ela podia perceber, e com a intensidade com que os moradores o detestavam e exigiam que fosse retirado. Quando ela perguntava qual a causa disso, a resposta comum era: “Para que serve?”, ou “Quem foi que pediu o gramado?” Por fim, certo dia uma moradora mais bem articulada que os outros disse o seguinte: “Ninguém se interessou em saber o que queríamos quando construíram este lugar. Eles demoliram nossas casas e nos puseram aqui e puseram nossos amigos em outro lugar. Perto daqui não há um único lugar para tomar um café, ou comprar um jornal, ou pedir emprestado alguns trocados. Ninguém se importou com o que precisávamos. Mas os poderosos vêm aqui, olham para esse gramado e dizem: ‘Que maravilha! Agora os pobres têm de tudo!'”

Essa moradora estava dizendo o que os moralistas disseram por milhares de anos: as aparências enganam. Nem tudo o que reluz é ouro.

E dizia mais: há um aspecto ainda mais vil que a feiura ou a desordem patentes, que é a máscara ignóbil da pretensa ordem, estabelecida por meio do menosprezo ou da supressão da ordem verdadeira que luta para existir e ser atendida.

Na tentativa de explicar a ordem subjacente das cidades, utilizo muito mais exemplos de Nova York porque é aí que moro. Contudo, a maioria das ideias básicas presentes neste livro vem de particularidades que percebi em outras cidades ou que me foram contadas. Por exemplo, meu primeiro vislumbre sobre os poderosos efeitos de certos tipos de combinações funcionais nas cidades deve-se a Pittsburgh; minhas primeiras especulações sobre a segurança nas ruas, a Filadélfia e Baltimore; minhas primeiras noções dos meandros do centro urbano, a Boston; minhas primeiras pistas sobre erradicação de cortiços, a Chicago. A maior parte do material para essas reflexões estava diante da porta de casa, mas talvez seja mais fácil perceber as coisas primeiro onde elas não são familiares. A ideia fundamental – tentar entender a intrincada ordem social e econômica sob a aparente desordem das cidades – não era minha, mas de William Kirk, chefe do Núcleo Comunitário Union, no East Harlem, Nova York, o qual, ao me mostrar o East Harlem, mostrou-me uma maneira de observar também outros bairros e centros urbanos. Em todos os casos, tentei cotejar o que vi ou ouvi nas cidades ou nos bairros para descobrir a relevância dessas lições em outros contextos.

Concentrei-me nas cidades grandes e em suas áreas internas porque essa é a questão mais constantemente negligenciada na teoria urbanística. Acredito que isso possa ter uma utilidade ainda maior à medida que o tempo passar, já que várias das áreas urbanas de hoje com os piores problemas

– e nitidamente os mais embaraçosos – eram subúrbios e áreas residenciais nobres e tranquilas há não muito tempo; é provável que muitos dos novos subúrbios ou semissubúrbios venham a ser engolidos pelas cidades e tenham sucesso ou não enquanto tais, de acordo com sua adaptação ou não à função de distritos urbanos. Além do mais, para ser franca, prefiro as cidades densamente povoadas e me importo mais com elas.

No entanto, espero que o leitor não entenda minhas observações como um guia do que ocorre nas cidades, nas pequenas cidades ou nos subúrbios que se mantêm periféricos. Cidades, subúrbios e até mesmo cidadezinhas são organismos totalmente diferentes das metrópoles. Já estamos numa enrascada enorme por tentar entender as cidades grandes com base no comportamento e no suposto funcionamento das cidades menores. Se tentarmos entender as cidades menores com base nas metrópoles, a confusão será ainda maior.

Espero que todos os leitores deste livro comparem constante e ceticamente o que digo com seu próprio conhecimento acerca das cidades e de seu funcionamento. Caso haja imprecisões nas observações ou erros nas inferências e conclusões a que cheguei, espero que tais falhas sejam rapidamente retificadas. O cerne da questão é que precisamos urgentemente adquirir e aplicar o mais rápido possível todo conhecimento sobre as cidades que seja útil e verdadeiro.

Tenho feito afirmações ásperas a respeito da teoria urbanística ortodoxa e devo voltar a fazê-las quando isso se mostrar necessário. Hoje em dia, essas ideias ortodoxas fazem parte do nosso folclore. Elas são prejudiciais porque as encaramos como naturais. Para mostrar como surgiram e evidenciar sua parca relevância, exporei aqui as linhas gerais das ideias mais influentes que contribuíram para as verdades do planejamento e do desenho arquitetônico urbano ortodoxos modernos2.

A vertente mais importante dessa influência começa mais ou menos com Ebenezer Howard, repórter britânico de tribunais, cujo passatempo era o urbanismo. Howard observou as condições de vida dos pobres na Londres do final do século XIX e com toda razão não gostou do que cheirou, viu e ouviu. Ele detestava não só os erros e os equívocos da cidade, mas a própria cidade, e considerava uma desgraça completa e uma afronta à natureza o fato de tantas pessoas terem de conviver aglomeradas. Sua receita para a salvação das pessoas era acabar com a cidade.

Ele propôs, em 1898, um plano para conter o crescimento de Londres e também repovoar a zona rural, onde as vilas estavam em decadência, construindo um novo tipo de cidade, a Cidade-Jardim, onde os pobres da cidade poderiam voltar a viver em contato com a natureza. Assim, eles ganhariam a vida; a indústria se instalaria na Cidade-Jardim, visto que Howard não projetava cidades, nem cidades-dormitórios. Sua meta era criar cidadezinhas autossuficientes, cidades realmente muito agradáveis se os moradores fossem dóceis, não tivessem projetos de vida próprios e não se incomodassem em levar a vida em meio a pessoas sem projetos de vida próprios. Como em todas as utopias, o direito de possuir projetos de qualquer significado cabia apenas aos urbanistas de plantão. A Cidade-Jardim deveria ser rodeada por um cinturão agrícola. A indústria ficaria em território predeterminado; as escolas, as moradias e as áreas verdes, em territórios residenciais predeterminados; e no centro ficariam os estabelecimentos comerciais, esportivos e culturais, partilhados por todos. O conjunto da cidade e do cinturão verde deveria ser permanentemente gerido pela administração pública sob a qual a cidade tivesse nascido, de modo a evitar a especulação ou mudanças supostamente descabidas no uso da terra, e também a afastar a tentação de aumentar sua densidade – resumindo, a evitar que ela se tornasse uma cidade grande. A população máxima não deveria ultrapassar 30 mil habitantes.

Nathan Glazer resumiu bem essa visão em Architectural Forum: “A aparência era a de uma cidade rural inglesa, com a mansão senhorial e seus jardins substituídos por um centro comunitário e algumas fábricas escondidas atrás de uma cortina de árvores para gerar trabalho.”

O equivalente norte-americano mais próximo talvez seja o da cidade empresarial modelo, com distribuição de lucros, e a gestão da vida político-cívica cotidiana a cargo da Associação de Pais e Mestres. Howard vislumbrava não apenas um novo ambiente e uma nova vida social, mas uma sociedade política e economicamente paternalista.

Todavia, como Glazer assinalou, a Cidade-Jardim foi “concebida como uma alternativa à cidade e como uma solução para os problemas urbanos; esse foi, e ainda é, o alicerce de seu imenso poder como conceito de planejamento urbano”. Howard conseguiu que se construíssem duas Cidades-Jardins, Letchworth e Welwyn, e é claro que a Inglaterra e a Suécia erigiram, depois da Segunda Guerra Mundial, várias cidades-satélites baseadas nos princípios da Cidade-Jardim. Nos Estados Unidos, o subúrbio de Radburn, Nova Jersey, e as cidades de cinturões verdes (na verdade, subúrbios), financiadas pelo governo e construídas durante a Depressão, foram todas adaptações incompletas daquela ideia. Porém, a influência do plano de Howard, que teve aceitação expressa, ou razoavelmente expressa, não era nada em comparação com sua influência nos conceitos subjacentes a todo o planejamento urbano norte-americano atual. Planejadores urbanos e projetistas sem interesse pelo modelo da Cidade-Jardim ainda se pautam intelectualmente por seus princípios fundamentais.

Howard trouxe à baila ideias efetivas para a destruição das cidades: ele compreendeu que a melhor maneira de lidar com as funções da cidade era selecionar e separar do todo os usos simples e dar a cada um deles uma independência relativa. Concentrou-se na oferta de moradias adequadas como questão prioritária, à qual todas as outras se subordinavam; além do mais, definiu uma moradia adequada de acordo com as características físicas dos núcleos suburbanos e com as características sociais das cidades de pequeno porte. Ele achava que o comércio deveria fazer o fornecimento rotineiro e padronizado de mercadorias e atender a um mercado restrito. Concebia o planejamento como uma série de ações estáticas; em cada caso, o plano deveria prever tudo o que fosse necessário e, depois de posto em prática, deveria ser protegido contra quaisquer alterações, ainda que mínimas. Também entendia o planejamento como essencialmente paternalista, quando não autoritário. Não se interessava pelos aspectos urbanos que não pudessem ser abstraídos para servir à sua utopia.

Descartou particularmente a complexa e multifacetada vida cultural da metrópole. Não tinha interesse em questões como segurança pública, troca de ideias, funcionamento político ou criação de novas saídas econômicas nas grandes cidades, nem dava atenção à criação de novas maneiras de fortalecer essas atribuições, porque, afinal, esse tipo de vida não estava em seus planos.

Tanto em suas preocupações quanto em suas omissões, Howard era justificável sob seu ponto de vista, mas não sob o ponto de vista urbanístico. Ainda assim, praticamente todo o planejamento urbano moderno é uma adaptação ou um remendo desse material absurdo.

A influência de Howard no planejamento urbano norte-americano chegou à cidade por duas vertentes: de um lado, urbanistas regionais e de cidades menores e, de outro, arquitetos. Na trilha do urbanismo, Sir Patrick Geddes, biólogo e filósofo escocês, via a ideia da Cidade-Jardim não como um modo fortuito de assimilar o crescimento populacional que de outra forma se dirigiria a uma grande cidade, mas como ponto de partida para um modelo muito mais grandioso e abrangente. Ele imaginava o planejamento de cidades em termos do planejamento de regiões inteiras. Com o planejamento regional, as Cidades-Jardins poderiam ser distribuídas racionalmente por amplos territórios, imbricando-se com recursos naturais, em equilíbrio com a agricultura e os bosques, formando um todo lógico e esparso.

As ideias de Howard e Geddes foram adotadas com entusiasmo nos Estados Unidos durante os anos 20 e ampliadas por um grupo de pessoas extremamente eficientes e dedicadas, entre elas Lewis Mumford, Clarence Stein, o falecido Henry Wright e Catherine Bauer. Embora se definissem como planejadores regionais, mais recentemente Catherine Bauer denominou esse grupo os “descentralizadores”, nome mais acertado, uma vez que o resultado imediato do planejamento regional, segundo a visão deles, deveria ser descentralizar as grandes cidades, reduzi-las, e dispersar as empresas e a população em cidades menores e separadas. Naquela época, tinha-se a impressão de que a população norte-americana estava envelhecendo e parando de crescer, e o problema parecia ser não acomodar uma população em rápido crescimento, mas redistribuir uma população estática.

Como ocorreu com o próprio Howard, a influência desse grupo materializou-se menos na obtenção da aceitação expressa a seu plano – que não deu em nada – do que no planejamento urbano e na legislação referente a habitação e a recursos financeiros habitacionais. Os projetos residenciais modelo de Stein e Wright, feitos principalmente para ambientes suburbanos ou para a periferia das cidades, juntamente com apontamentos e diagramas, esboços e fotografias fornecidos por Mumford e Bauer, demonstraram e popularizaram ideias como estas, que hoje são inquestionáveis no urbanismo ortodoxo: a rua é um lugar ruim para os seres humanos; as casas devem estar afastadas dela e voltadas para dentro, para uma área verde cercada. Ruas numerosas são um desperdício e só beneficiam os especuladores imobiliários, que determinam o valor pela metragem da testada do terreno. A unidade básica do traçado urbano não é a rua, mas a quadra, mais particularmente, a superquadra. O comércio deve ser separado das residências e das áreas verdes. A demanda de mercadorias de um bairro deve ser calculada “cientificamente”, e o espaço destinado ao comércio deve ater-se a isso, e a nada mais. A presença de um número maior de pessoas é, na melhor das hipóteses, um mal necessário, e o bom planejamento urbano deve almejar pelo menos a ilusão de isolamento e privacidade, como num subúrbio. Os descentralizadores também insistiram nas premissas de Howard de que uma comunidade planejada deve ser ilhada, como uma unidade autossuficiente, deve resistir a mudanças futuras, e todos os detalhes significativos devem ser controlados pelos planejadores desde o início e mantidos dessa maneira. Em suma, o bom planejamento era o planejamento previamente projetado.

Para reforçar e intensificar a necessidade de uma nova ordem das coisas, os descentralizadores continuaram martelando na tecla do desprezo às cidades antigas. Não tinham curiosidade acerca dos sucessos das metrópoles. Interessavam-se apenas pelos fracassos. Tudo era fracasso. Um livro como The Culture of Cities, de Mumford, era em grande parte um catálogo mórbido e tendencioso de mazelas. A cidade grande era a Megalópole, a Tiranópole, a Necrópole, uma monstruosidade, uma tirania, uma morta-viva. Deve desaparecer. A área central de Nova York era o “caos petrificado” (Mumford). A forma e a aparência das cidades não era senão “um acidente caótico (…) um apanhado dos caprichos fortuitos e antagônicos de pessoas individualistas e mal avisadas” (Stein). Os centros urbanos resumiam-se “à preponderância de barulho, sujeira, mendigos, suvenires e anúncios competitivos e insistentes” (Bauer).

Como pode valer a pena tentar compreender uma coisa tão ruim? As análises dos descentralizadores, os projetos arquitetônicos e habitacionais que acompanhavam essas análises e derivavam delas, a legislação federal de habitação e de financiamento habitacional diretamente influenciada por essa visão – nenhum deles tinha relação alguma com a compreensão das cidades ou a manutenção de metrópoles prósperas, nem tinham tal intenção. Eram justificativas e meios para descartar as cidades, e os descentralizadores eram francos a esse respeito.

Contudo, nas escolas de arquitetura e urbanismo, e também no Congresso, nas assembleias legislativas e nas prefeituras, as ideias dos descentralizadores foram sendo gradativamente assimiladas como as linhas-mestras de uma abordagem construtiva das próprias metrópoles. Esse é o acontecimento mais espantoso de toda essa lamentável história: as pessoas que queriam sinceramente fortalecer as cidades grandes acabaram adotando as receitas nitidamente arquitetadas para minar sua economia e destruí-las.

O homem que teve a ideia mais espantosa a respeito de como colocar todo esse planejamento anticidade diretamente dentro das próprias cidadelas da iniquidade foi o arquiteto europeu Le Corbusier. Ele planejou nos anos 20 uma cidade imaginária que denominou Ville Radieuse, composta não dos prédios baixos, tão caros aos descentralizadores, mas principalmente de arranha-céus dentro de um parque. “Imagine que estamos entrando na cidade pelo Grande Parque”, escreveu Le Corbusier. “Nosso carro veloz toma a rodovia elevada especial entre os majestosos arranha-céus; ao chegar mais perto, vemos contra o céu a sucessão de vinte e quatro arranha-céus; à esquerda e à direita, no entorno de cada área específica, ficam os edifícios municipais e administrativos; e circundando esse espaço, os prédios universitários e os museus. A cidade inteira é um Parque.” Na cidade vertical de Le Corbusier, a massa da população seria alojada a uma taxa de 296 habitantes por mil metros quadrados, uma densidade urbana sem dúvida fantasticamente alta, mas, em virtude das construções altas, 95 por cento do solo permaneceria livre. Os arranha-céus ocupariam apenas 5 por cento do solo. As pessoas de alta renda ficariam nas moradias mais baixas e luxuosas, ao redor de pátios, com 85 por cento de área livre. Aqui e acolá haveria restaurantes e teatros.

Le Corbusier planejava não apenas um ambiente físico; projetava também uma utopia social. A utopia de Le Corbusier era uma condição do que ele chamava de liberdade individual máxima, com o que ele aparentemente se referia não à liberdade de fazer qualquer coisa, mas à liberdade em relação

  1. responsabilidade cotidiana. Em sua Ville Radieuse, supostamente ninguém teria mais a obrigação de sustentar o irmão. Ninguém teria de se preocupar com planos próprios. Ninguém deveria ser tolhido.

Os descentralizadores e outros leais defensores da Cidade-Jardim ficaram pasmos com a cidade de Le Corbusier – espigões num parque – e ainda estão. A reação deles foi, e continua sendo, muito parecida com a de professores de uma escola maternal progressista diante de um orfanato profundamente burocrático. E apesar disso, ironicamente, a Ville Radieuse provém diretamente da Cidade-Jardim. Le Corbusier assimilou a imagem fundamental da Cidade-Jardim, ao menos superficialmente, e empenhou-se em torná-la prática em locais densamente povoados. Definiu sua criação como uma Cidade-Jardim factível. “A Cidade-Jardim é uma quimera”, escreveu. “A natureza desintegra-se com a invasão de ruas e casas, e o prometido isolamento transforma-se numa comunidade superlotada (…). A solução está na ‘Cidade-Jardim vertical’.”

Também em outro sentido, na acolhida relativamente fácil do público, a Ville Radieuse de Le Corbusier dependia da Cidade-Jardim. Os planejadores da Cidade-Jardim e um séquito cada vez maior de reformadores habitacionais, estudantes e arquitetos popularizavam sem descanso os conceitos de superquadra, bairro projetado, plano imutável, e gramados, gramados, gramados; além do mais, estavam conseguindo firmar esses aspectos como símbolos de um urbanismo humano, socialmente responsável, funcional e magnânimo. Le Corbusier não precisava de forma alguma justificar sua visão com argumentos humanos ou funcionais. Se o grande propósito do planejamento urbano era Christopher Robin poder dar pulinhos no gramado, qual era o erro de Le Corbusier? Os protestos dos descentralizadores contra a padronização, a mecanização, a despersonificação soaram para alguns como um sectarismo tolo.

A cidade dos sonhos de Le Corbusier teve enorme impacto em nossas cidades. Foi aclamada delirantemente por arquitetos e acabou assimilada em inúmeros projetos, de conjuntos habitacionais de baixa renda a edifícios de escritórios. Além de tornar pelo menos os princípios superficiais da Cidade-Jardim superficialmente aplicáveis a cidades densamente povoadas, o sonho de Le Corbusier continha outras maravilhas. Ele procurou fazer do planejamento para automóveis um elemento essencial de seu projeto, e isso era uma ideia nova e empolgante nos anos 20 e início dos anos 30. Ele traçou grandes artérias de mão única para trânsito expresso. Reduziu o número de ruas, porque “os cruzamentos são inimigos do tráfego”. Propôs ruas subterrâneas para veículos pesados e transportes de mercadorias, e claro, como os planejadores da Cidade-Jardim, manteve os pedestres fora das ruas e dentro dos parques. A cidade dele era como um brinquedo mecânico maravilhoso. Além do mais, sua concepção, como obra arquitetônica, tinha uma clareza, uma simplicidade e uma harmonia fascinantes. Era muito ordenada, muito clara, muito fácil de entender. Transmitia tudo num lampejo, como um bom anúncio publicitário. Essa visão e seu ousado simbolismo eram absolutamente irresistíveis para urbanistas, construtores, projetistas e também para empreiteiros, financiadores e prefeitos. Ela deu enorme impulso aos “progressistas” do zoneamento, que redigiram normas elaboradas para encorajar os construtores a reproduzir ainda que parcialmente o sonho. Não importava quão vulgar ou acanhado fosse o projeto, quão árido ou inútil o espaço, quão monótona fosse a vista, a imitação de Le Corbusier gritava: “Olhem o que eu fiz!” Como um ego visível e enorme, ela representa a realização de um indivíduo. Mas, no tocante ao funcionamento da cidade, tanto ela como a Cidade-Jardim só dizem mentiras.

Embora os descentralizadores, devotados ao ideal de uma vida cômoda de cidade do interior, nunca tenham concordado com a visão de Le Corbusier, a maioria de seus discípulos concordou. Hoje, praticamente todos os projetistas urbanos requintados harmonizam vários aspectos das duas concepções. A técnica de reurbanização que leva nomes variados, como “remoção seletiva” ou “revitalização localizada” ou “plano de revitalização” ou “conservação planejada” – querendo referir-se à proibição de erradicação total de uma área degradada – é principalmente uma artimanha para ver quantos prédios antigos serão mantidos em pé e ainda assim converter o local numa versão aceitável da Cidade-Jardim Radieuse. Técnicos em zoneamento, engenheiros de tráfego, legisladores, técnicos do uso do solo urbano e planejadores de parques e playgrounds – nenhum dos quais vive num vazio ideológico – utilizam constantemente, como pontos de referência fixos, essas duas concepções influentes e a concepção mista, mais sofisticada. Eles podem ir de uma visão à outra, podem usar um meio-termo, podem vulgarizá-las, mas elas são os pontos de partida.

Vamos abordar rapidamente outra vertente do planejamento urbano ortodoxo, menos importante. Ela teve início mais ou menos na Columbian Exposition de Chicago, em 1893, quase na mesma época em que Howard formulava as ideias da Cidade-Jardim. A exposição de Chicago desconsiderou a sugestiva arquitetura moderna que despontara na cidade e preferiu colocar em cena uma imitação retrógrada do estilo renascentista. No pavilhão da exposição, alinhavam-se monumentos pesados e grandiosos, como folhados congelados dispostos numa bandeja, numa espécie de premonição decorada e esparramada das ultimamente repetitivas fileiras de espigões de Le Corbusier num parque. Essa reunião orgiástica do opulento e do monumental atraiu a atenção tanto dos planejadores quanto do público. Deu impulso a um movimento chamado City Beautiful, e, aliás, a organização da exposição foi comandada pelo homem que se tornaria o principal planejador do City Beautiful, Daniel Burnham, de Chicago.

A meta do City Beautiful era a Cidade Monumental. Foram traçados projetos de um complexo de bulevares barrocos, a maioria dos quais não resultou em nada. O que resultou do movimento foi o Centro Monumental, apresentado em maquete na exposição. Cidade após cidade construía seu centro administrativo ou seu centro cultural. Esses edifícios foram dispostos ao longo de bulevares, como o Benjamin Franklin Parkway, em Filadélfia, ou em esplanadas, como o Government Center, de Cleveland, ou eram ladeados por um parque, como o Civic Center de St. Louis, ou se misturavam a uma espécie de parque, como o Civic Center de São Francisco. Não importa onde estivessem, o cerne da questão era que esses edifícios monumentais haviam sido apartados do resto da cidade e agrupados para criar um efeito o mais grandioso possível, dando ao conjunto um tratamento de unidade completa, separada e bem definida.

A população orgulhava-se deles, mas esses conjuntos não tiveram sucesso. Em primeiro lugar, invariavelmente a cidade normal à volta deles decaía em vez de prosperar, e eles sempre atraíam uma vizinhança incongruente de salões de tatuagem sujos e lojas de roupas usadas, quando não apenas uma decadência indescritível e deprimente. Em segundo lugar, as pessoas ficavam visivelmente longe deles. Quando a exposição se tornou parte da cidade, por alguma razão as coisas não funcionaram como na exposição.

A arquitetura dos centros monumentais da City Beautiful saiu de moda. Mas a concepção não foi questionada e nunca teve tanta força quanto hoje. A ideia de separar certas funções públicas e culturais e descontaminá-las da cidade real casava-se bem com os preceitos da Cidade-Jardim. Os conceitos fundiram-se harmoniosamente, quase como a Cidade-Jardim e a Ville Radieuse se fundiram, numa espécie de Cidade-Jardim Beautiful Radieuse, como o imenso empreendimento da Lincoln Square de Nova York, no qual o monumental centro cultural do City Beautiful integra uma série de construções vizinhas residenciais, comerciais e universitárias nos moldes da Ville Radieuse e da Cidade-Jardim Radieuse.

Analogamente, o pressuposto da separação – e da obtenção da ordem por meio da repressão a quaisquer planos, menos os dos urbanistas – foi transposto com facilidade para todos os tipos de funções urbanas; até hoje o plano diretor de uso do solo das metrópoles constitui-se basicamente de propostas de localização de atividades – geralmente levando em conta os transportes – de várias dessas escolhas “descontaminadas”.

De uma ponta a outra, de Howard e Burnham à mais recente emenda à lei de renovação urbana, toda a trama é absurda para o funcionamento das cidades. Não estudadas, desprezadas, as cidades têm servido de cobaia.


1. Por favor, não se esqueça de North End. Farei frequentes referências a ele neste livro.

2. Os leitores que quiserem um relato mais completo e uma abordagem mais concordante, o que a minha não é, devem ir direto às fontes, que são bem interessantes, principalmente: Garden Cities of Tomorrow [As Cidades-Jardins de amanhã], de Ebenezer Howard; The Culture of Cities [A cultura das cidades], de Lewis Mumford; Cities in Evolution [Cidades em evolução], de Sir Patrick Geddes; Modern Housing [Habitação moderna], de Catherine Bauer; Toward New Towns for America [Por novas cidades nos EUA], de Clarence Stein; Nothing Gained by Overcrowding [Não há vantagens na superlotação], de Sir Raymond Unwin; e The City of Tomorrow and Its Planning [A cidade do amanhã e seu planejamento], de Le Corbusier. O melhor apanhado que conheço é um conjunto de textos sob o título “Assumptions and Goals of City Planning” [Premissas e metas do planejamento urbano], reunidos em Land-Use Planning, A Casebook on the Use, Misuse and Re-use of Urban Land [Planejamento do uso do solo – estudos de casos sobre uso, mau uso e reuso do solo urbano], de Charles M. Haar.