Entre as superstições do planejamento urbano e do planejamento habitacional existe uma fantasia sobre a transformação das crianças.
Esse é o capítulo 4
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Essa superstição afirma: a população infantil é condenada a brincar nas ruas. Essas crianças pálidas e raquíticas, num ambiente moral funesto, contam umas às outras mentiras sobre sexo, abafando o riso maldoso e aprendendo novas formas de degradação de modo tão eficiente como se estivessem num reformatório. Essa situação é chamada de “preço moral e físico pago por nossas crianças nas ruas”, às vezes denominada apenas “sarjeta”.
Pudera essas crianças carentes serem retiradas das ruas e colocadas em playgrounds, com equipamentos para se exercitar, espaço para correr, gramados para lhes encantar a alma! Lugares limpos e alegres, cheios de risos de crianças correspondendo a um ambiente saudável. É demais para uma fantasia.
Vejamos uma história real, registrada por Charles Guggenheim, documentarista de St. Louis. Guggenheim estava fazendo um filme a respeito das atividades numa creche de período integral em St. Louis. Ele observou que no final da tarde quase a metade das crianças ia embora com muita relutância.
Guggenheim ficou tão curioso, que decidiu investigar. Sem exceção, as crianças que iam embora a contragosto vinham de um conjunto habitacional próximo. E, também sem exceção, todas as que saíam de boa vontade vinham dos cortiços antigos de ruas próximas. O mistério, concluiu Guggenheim, era simples. Ao voltar para o conjunto habitacional, com seus generosos gramados e playgrounds, as crianças passavam por um corredor polonês formado por valentões, que as faziam esvaziar os bolsos ou então as espancavam, às vezes ambas as coisas. Essas crianças pequenas não conseguiam voltar para casa todos os dias sem sofrer essa provação aterrorizante. Guggenheim descobriu que as crianças que voltavam para as ruas tradicionais não corriam o risco de extorsão. Elas tinham uma quantidade enorme de ruas para escolher e, espertas, escolhiam as mais seguras. “Se alguém implicasse com elas, havia sempre um comerciante a quem podiam recorrer ou alguém que as ajudasse”, relata Guggenheim. “Tinham também várias rotas de fuga, caso alguém tentasse emboscá-las. Esses garotinhos sentiam-se seguros e cheios de si e gostavam de voltar para casa.” Guggenheim notou que o terreno ajardinado e o playground do conjunto habitacional eram extremamente desinteressantes; pareciam sempre desertos, em comparação com as ruas tradicionais da vizinhança, cheias de coisas interessantes, diversidade e elementos tanto para a máquina fotográfica quanto para a imaginação.
Vejamos outra história real, uma guerra de gangues juvenis durante o verão de 1959, em Nova York, que culminou com a morte de uma garota de quinze anos que não tinha relação alguma com a briga, e estava apenas no espaço do conjunto habitacional onde morava. Os acontecimentos que levaram à tragédia desse dia e o palco onde ocorreram foram descritos da seguinte maneira pelo New York Post, mais tarde, durante o julgamento:
O primeiro tumulto ocorreu por volta do meio-dia, quando os Esportistas invadiram o território dos Garotos da Rua Forsyth, no Parque Sara Delano Roosevelt1 (…). De tarde, os Garotos da Rua Forsyth decidiram utilizar suas armas mais poderosas, uma espingarda e bombas de gasolina (…). Em meio à batalha, também no Parque Sara Delano Roosevelt (…) um garoto de 14 anos da Rua Forsyth foi morto a facadas, e dois outros meninos, um de 11 anos, ficaram gravemente feridos (…). Por volta das 9 horas da noite [sete ou oito garotos da Rua Forsyth] apareceram de repente no reduto dos Esportistas, perto do conjunto habitacional Lillian Wald e, da terra de ninguém da Avenida D [limite do terreno do conjunto], lançaram as bombas de gasolina sobre o grupo, ao mesmo tempo que Cruz se agachava e disparava a espingarda.
Onde ocorreram essas três batalhas? Num parque e numa espécie de parque do conjunto habitacional. Após revoltas desse tipo, um dos paliativos a que invariavelmente se recorre são mais parques e playgrounds. Ficamos desnorteados pela força dos símbolos.
As “gangues de rua” travam suas “brigas de rua” principalmente em parques e playgrounds. Quando o New York Times, em setembro de 1959, fez uma retrospectiva das piores batalhas de gangues juvenis durante a década na cidade, absolutamente todas ocorreram num parque. Além do mais, e cada vez com maior frequência, não só em Nova York como também em outras cidades, as crianças que participam desses horrores são identificadas como moradoras dos conjuntos habitacionais das superquadras, onde se conseguiu tirar das ruas as brincadeiras cotidianas (as próprias ruas foram eliminadas na maioria). A área de maior criminalidade no Lower East Side de Nova York, onde ocorreu a guerra de gangues descrita acima, é exatamente uma espécie de parque existente nos conjuntos habitacionais. As duas gangues mais famosas do Brooklyn estão enraizadas nos dois conjuntos mais antigos. Ralph Whelan, diretor do Conselho Juvenil de Nova York, revela, segundo o New York Times, “um aumento constante nos índices de delinquência” onde quer que se construa um novo conjunto habitacional. A mais temida gangue de garotas de Filadélfia nasceu no segundo mais antigo conjunto habitacional, e a região de maior delinquência coincide com a região dos maiores conjuntos habitacionais. Em St. Louis, o conjunto onde Guggenheim descobriu a prática de extorsão é considerado relativamente seguro em comparação com o maior conjunto da cidade – 230 mil metros quadrados ocupados na maioria por gramados, pontilhados de playgrounds e despojados de ruas urbanas, o principal ninho de delinquência daquela cidade2. Esses conjuntos habitacionais mostram, entre outras coisas, a intenção de tirar as crianças das ruas. Esse objetivo faz parte de sua concepção.
Os resultados decepcionantes não surpreendem. As mesmas normas de segurança urbana e vida pública que servem para os adultos servem para as crianças, a não ser pelo fato de que as crianças são bem mais vulneráveis ao perigo e à violência que os adultos.
Na vida real, que mudança significativa ocorre de fato se as crianças são transferidas de uma rua cheia de vida para os parques ou para os playgrounds públicos ou de conjuntos habitacionais?
Na maioria dos casos (não em todos, felizmente), a mudança mais significativa é esta: as crianças saem de sob os olhos vigilantes de uma grande quantidade de adultos para um lugar onde a proporção de adultos é baixa ou inexistente. Achar que isso representa um progresso em termos de educação infantil urbana é pura ilusão.
As próprias crianças da cidade sabem disso, e há muitas gerações. “Quando queríamos fazer alguma coisa proibida, sempre íamos ao Parque Lindy, porque lá não havia adultos para nos vigiar”, diz Jesse Reichek, artista que cresceu no Brooklyn. “A maior parte do tempo brincávamos na rua, onde não conseguíamos driblar a vigilância.”
A vida de hoje é igual. Meu filho, ao contar como escapou de quatro garotos que tentaram bater nele, disse: “Tive medo que eles me pegassem ao atravessar o parquinho. Se eles me pegassem lá, eu estaria ferrado!”
Poucos dias depois do assassinato de dois garotos de dezesseis anos num playground do West Side, na região central de Manhattan, fiz uma visita melancólica ao local. As ruas vizinhas tinham evidentemente voltado ao normal. Centenas de crianças, sob a vigilância dos olhos de inúmeros adultos, que também usavam as calçadas ou estavam nas janelas, estavam entretidas numa variedade enorme de brincadeiras de rua e pega-pegas barulhentos. As calçadas eram sujas, estreitas demais para o que se exigia delas e careciam da sombra de árvores. Mas aí não se via nenhum incêndio criminoso, nem violência contra pessoas, nem a proliferação de armas perigosas. No parquinho onde ocorrera o assassinato de noite, aparentemente tudo também voltara ao normal. Três garotinhos estavam acendendo uma fogueira sob um banco de madeira. Alguém batia a cabeça de outro garoto contra o concreto. O zelador estava compenetrado em arriar do mastro, solene e vagarosamente, a bandeira norte-americana.
Ao voltar para casa e passar pelo relativamente pacífico playground próximo do local onde moro, percebi que seus únicos frequentadores, no final da tarde, após a saída de todas as mães e do zelador, eram dois meninos pequenos ameaçando golpear com seus patins uma garotinha, e também um bêbado, que se tinha recomposto para balançar a cabeça e resmungar que eles não deviam fazer aquilo. Mais adiante na rua, num quarteirão cheio de imigrantes porto-riquenhos, havia outra cena contrastante. Vinte e oito crianças de todas as idades brincavam na calçada, e nada de violência, incêndios criminosos ou qualquer ocorrência mais séria que uma disputa por um saco de balas. Elas estavam sob a vigilância ocasional de adultos que se encontraram e conversavam na calçada. A vigilância era só aparentemente ocasional, como ficou provado quando estourou a disputa pelas balas, e a paz e a justiça foram restabelecidas. Os adultos nem sempre eram os mesmos, porque outros apareciam nas janelas e outros passavam para lá e para cá, ou se detinham um pouco. Mas a quantidade de adultos permaneceu praticamente constante – entre oito e onze – durante a hora em que fiquei observando. Chegando a minha casa, notei que do nosso lado da quadra, defronte do prédio de apartamentos, da alfaiataria, de casa, da lavanderia, da pizzaria e da quitanda, doze crianças brincavam na calçada sob as vistas de catorze adultos.
Sem dúvida, nem todas as calçadas têm essa espécie de vigilância, e esse é um dos problemas urbanos que o planejamento deveria ajudar a corrigir. Calçadas pouco usadas não oferecem vigilância adequada para a educação de crianças. E as calçadas também não podem ser seguras, mesmo com olhos voltados para elas, se tiverem uma vizinhança que troca de endereço constante e rapidamente – outro problema premente do planejamento urbano. Mas os playgrounds e os parques próximos dessas ruas são ainda menos saudáveis.
Nem todos os playgrounds e os parques são perigosos ou têm vigilância insuficiente, como veremos no próximo capítulo. Porém, os que são saudáveis normalmente se situam em vizinhanças de ruas movimentadas e seguras e onde prevalece nas calçadas um forte espírito de vida pública civilizada. Sejam quais forem as diferenças de segurança e salubridade que existam entre os playgrounds e as calçadas de qualquer local, elas invariavelmente favorecem as tão difamadas ruas.
As pessoas que têm a responsabilidade real, não teórica, de criar crianças nas cidades sabem disso muito bem. “Pode sair”, dizem as mães nas cidades, “mas fique na calçada”. Eu mesma digo isso a meus filhos. E com isso queremos dizer mais do que “não vá para a rua porque lá há carros”.
Ao descrever o resgate milagroso de um menino de nove anos que foi empurrado para dentro de uma vala de esgoto por um agressor não identificado – num parque, é claro –, o New York Times relatou: “A mãe dissera no mesmo dia aos garotos que não brincassem no Parque High Bridge (…). Depois, ela disse que podiam.” Os amigos do garoto, assustados, tiveram a presença de espírito de correr do parque e voltar para as ruas maléficas, onde conseguiram ajuda rapidamente.
Frank Havey, diretor da associação comunitária do North End, em Boston, diz que os pais toda vez comentam esse problema com ele: “Dizemos aos nossos filhos que brinquem na calçada depois do jantar. Mas temos ouvido falar que as crianças não devem brincar na rua. Será que estamos errados?” Havey diz que estão certos. Ele atribui boa parte dos baixos índices de criminalidade do North End à excelente vigilância das pessoas sobre as crianças que estão brincando no lugar em que a comunidade se faz mais presente – as calçadas.
Os planejadores da Cidade-Jardim, em seu ódio pelas ruas, acharam que a solução para manter as crianças longe das ruas e sob uma vigilância salutar seria construindo para elas pátios no centro das superquadras. Essa conduta foi herdada pelos projetistas da Cidade-Jardim Radieuse. Hoje, várias amplas áreas reformadas estão sendo replanejadas segundo o princípio dos parques encravados no meio dos quarteirões.
O problema desse arranjo, como se pode constatar nos exemplos existentes de Chatham Village, em Pittsburgh, e Baldwin Hills Village, em Los Angeles, e em núcleos menores com quintais em Nova York e Baltimore, é que nenhuma criança com iniciativa e perspicácia vai permanecer voluntariamente num lugar tão entediante depois dos seis anos de idade. A maioria, antes ainda. Esses mundos “para partilhar” protegidos servem e são utilizados na prática durante três ou quatro anos da vida de uma criança pequena, em vários sentidos os mais fáceis de lidar com elas. Nem mesmo os moradores adultos desses lugares querem desempenhar o papel de crianças mais velhas nesses pátios protegidos. Na Chatham Village e na Baldwin Hills Village, isso é expressamente proibido. Os pequerruchos são decorativos e relativamente dóceis, mas as crianças mais velhas são barulhentas e vigorosas e interferem no ambiente em vez de deixar que ele mexa com elas. Quando o ambiente já é “perfeito”, isso não dá certo. Além do mais, como se pode verificar em exemplos concretos e em plantas de construção, esse tipo de planejamento exige que os prédios estejam voltados para a parte de dentro do pátio. Não fosse assim, a graça do pátio não seria aproveitada e se perderia a facilidade de vigilância e acesso. Dessa forma, os fundos dos prédios, quase sem uso, e, pior ainda, as paredes cegas voltam-se para as ruas. A segurança das calçadas, que não têm um fim específico, é substituída por uma forma de segurança específica para uma parcela específica da população, durante um curto período de sua vida. Quando as crianças ousarem ir mais longe, como se espera que façam e farão, elas estarão mal servidas, como todas as outras pessoas.
Tenho insistido num aspecto negativo da criação das crianças nas cidades: o da segurança – a segurança das crianças contra sua própria perversidade, contra adultos perversos e contra outras crianças. Tenho insistido nisso porque minha intenção é demonstrar, por meio do problema de mais fácil compreensão, a absoluta falta de sentido da fantasia de que os playgrounds e os parques sejam locais naturalmente bons para as crianças e as ruas sejam locais naturalmente maus para elas.
Porém as calçadas movimentadas têm também aspectos positivos para a diversão das crianças, e esses aspectos são no mínimo tão importantes quanto a segurança e a proteção.
As crianças da cidade precisam de uma boa quantidade de locais onde possam brincar e aprender. Precisam, entre outras coisas, de oportunidades para praticar todo tipo de esporte e exercitar a destreza física – e oportunidades mais acessíveis do que aquelas de que desfrutam na maior parte dos casos. Ao mesmo tempo, no entanto, precisam de um local perto de casa, ao ar livre, sem um fim específico, onde possam brincar, movimentar-se e adquirir noções do mundo.
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essa espécie de recreação informal que as calçadas propiciam, e as calçadas movimentadas da cidade têm ótimas condições de fazê-lo. Quando se transfere esse divertimento quase caseiro para playgrounds e parques, ele não só é garantido com certo risco como há também um esbanjamento de funcionários contratados, equipamentos e espaço que poderiam ser mais bem empregados na forma de novos rinques de patinação, piscinas, lagos com botes e diversas outras atividades específicas ao ar livre. O uso genérico e ruim da recreação consome recursos que poderiam ser utilizados para uma recreação específica e saudável.
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uma enorme leviandade desprezar a presença normal de adultos em calçadas cheias de vida e, ao contrário, apostar (idealisticamente) na contratação de substitutos para ela. É uma leviandade não só do ponto de vista social como também econômico, porque as cidades sofrem de uma escassez drástica de dinheiro e de pessoal para utilizar o espaço de maneira mais interessante que com playgrounds – e de dinheiro e pessoal para outros aspectos da vida das crianças. Por exemplo, atualmente as redes municipais de educação têm em média de trinta a quarenta crianças por sala de aula – às vezes mais –, e entre elas se encontram crianças com todo tipo de problema, de desconhecimento do idioma a sérios desequilíbrios emocionais. As escolas públicas necessitam de um aumento em torno de 50 por cento no número de professores para enfrentar problemas graves e também precisam reduzir o tamanho das turmas para proporcionar melhor ensino. Em 1959, os hospitais municipais de Nova York tinham 58 por cento das vagas de enfermagem não preenchidas, e em muitas outras cidades a falta de enfermeiras tornou-se alarmante. As bibliotecas, e mais ainda os museus, têm reduzido o período de funcionamento, principalmente o horário das seções destinadas a crianças. Faltam recursos financeiros para o aumento imprescindível do número de instituições comunitárias nos novos cortiços e nos novos conjuntos habitacionais urbanos. Até mesmo as instituições existentes não dispõem de recursos para a expansão e a alteração necessárias em seus programas, em poucas palavras, mais pessoal. Esse tipo de necessidade deveria ter prioridade máxima nos recursos públicos e filantrópicos – não apenas nos recursos tristemente escassos de hoje, mas em recursos substancialmente maiores.
As pessoas das cidades que têm outros trabalhos e afazeres e, além disso, não dispõem da formação necessária, não podem aventurar-se como professores, enfermeiras, bibliotecários, guardas de museu ou assistentes sociais. Mas, como já o fazem nas calçadas vivas e diversificadas, elas têm condições ao menos de supervisionar a recreação informal das crianças e incorporá-las à sociedade.
Elas fazem isso enquanto se ocupam de suas outras atividades.
Os urbanistas parecem não perceber quão grande é a quantidade de adultos necessária para cuidar de crianças brincando. Parecem também não entender que espaço e equipamentos não cuidam de crianças. Estes podem ser complementos úteis, mas só pessoas cuidam de crianças e as incorporam à sociedade civilizada.
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uma insanidade urbanizar cidades de modo a desperdiçar esse potencial humano de cuidar das crianças e deixar incompleta essa tarefa essencial – com consequências terríveis – ou obrigar à contratação de substitutos. O mito de que os playgrounds e os gramados e os guardas ou supervisores contratados são inerentemente benéficos para as crianças, enquanto as vias públicas, cheias de pessoas comuns, são inerentemente nocivas, revela um profundo desdém pelas pessoas comuns.
Na prática, é só com os adultos das calçadas que as crianças aprendem – se é que chegam a aprender – o princípio fundamental de uma vida urbana próspera: as pessoas devem assumir um pouquinho de responsabilidade pública pelas outras, mesmo que não tenham relações com elas. Trata-se de uma lição que ninguém aprende por lhe ensinarem. Aprende-se a partir da experiência de outras pessoas sem laços de parentesco ou de amizade íntima ou responsabilidade formal para com você, que assumem um pouquinho da responsabilidade pública por você. Quando o Sr. Lacey, o chaveiro, dá uma bronca num de meus filhos que correu para a rua e mais tarde relata a desobediência a meu marido quando ele passa pela loja, meu filho recebe mais que uma lição clara sobre segurança e obediência. Recebe também, indiretamente, a lição de que o Sr. Lacey, com quem não temos outras relações que não a de vizinhos, sente-se em certo sentido responsável por ele. O garoto que ficou preso no elevador sem ajuda no conjunto habitacional do “partilhar” ou isolar-se aprende lições diferentes com essa experiência. O mesmo acontece com as crianças que espirram água para dentro das janelas das casas e em transeuntes e não são repreendidas, porque são crianças anônimas num local anônimo.
O ensinamento de que os moradores da cidade devem assumir responsabilidade pelo que acontece nas ruas é dado continuamente a crianças que usufruem a vida pública nas calçadas. Elas conseguem assimilá-lo surpreendentemente cedo. Mostram que o assimilaram ao reconhecer que também fazem parte desse processo. Elas dão indicações (antes de elas serem solicitadas) a pessoas que estão perdidas; advertem um sujeito de que ele levará uma multa se estacionar o carro naquele lugar; sugerem espontaneamente ao síndico do prédio que use sal grosso em vez de talhadeira para partir o gelo. A existência ou a ausência desse tipo de comportamento nas crianças da cidade é uma indicação muito boa da existência ou da ausência do comportamento responsável de adultos em relação à calçada e às crianças que a utilizam. As crianças imitam as atitudes dos adultos. E isso não tem relação alguma com a renda familiar. Em certas áreas, das mais pobres das cidades, as crianças demonstram que se faz por elas o que há de melhor; em outras, o que há de pior.
Trata-se de uma lição de urbanidade que as pessoas contratadas para cuidar de crianças não têm condições de ensinar, porque a essência dessa responsabilidade é que ela seja exercida sem a necessidade de um contrato. Trata-se de um ensinamento que os pais, por si sós, são incapazes de dar. Se os pais assumem uma pequena responsabilidade por estranhos ou vizinhos numa sociedade em que ninguém a assume, isso vem a significar que esses pais são embaraçosamente diferentes e intrometidos, e não que essa seja a conduta correta. Tal ensinamento deve emanar da própria sociedade, e nas cidades, quando isso ocorre, é quase sempre no período em que as crianças estão brincando espontaneamente nas calçadas.
A diversão em calçadas movimentadas e diversificadas difere de praticamente todos os outros tipos de lazer de que as crianças norte-americanas dispõem hoje: é uma recreação que não se encontra sob as rédeas do matriarcado.
Planejadores e projetistas são, em sua maioria, homens. Estranhamente, eles criam projetos e planos que desconsideram os homens como integrantes da vida diária e normal de onde quer que haja moradias. Ao planejar a vida residencial, o objetivo deles é satisfazer as pretensas necessidades cotidianas de donas de casa ociosas e criancinhas em idade pré-escolar. Resumindo, eles fazem projetos estritamente para sociedades matriarcais.
O ideal do matriarcado está inevitavelmente presente em todo planejamento urbano em que as residências estejam isoladas dos outros aspectos da vida. Está presente em todo planejamento para crianças em que a recreação informal esteja isolada em seus próprios domínios. Qualquer sociedade adulta presente na vida diária das crianças atingidas por tal projeto tem de ser um matriarcado. A Chatham Village, aquele modelo de Pittsburgh da vida na Cidade-Jardim, tem uma concepção e um funcionamento tão cabalmente matriarcais quanto a mais recente das cidades-dormitórios. Todos os conjuntos habitacionais são assim.
Localizar o trabalho e o comércio próximos das residências, mas mantê-los afastados, de acordo com a tradição imposta pela teoria da Cidade-Jardim, é uma solução tão matriarcal quanto situar as residências a quilômetros de distância do trabalho e dos homens. Os homens não são uma abstração. Ou estão por perto, em pessoa, ou não estão. Os locais de trabalho e o comércio devem mesclar-se às residências se se tiver a intenção de que os homens, como, por exemplo, os que trabalham na Rua Hudson ou próximo dela, estejam perto das crianças na vida diária – homens que participem da vida cotidiana normal, em contraposição aos homens que fazem uma aparição ocasional no parquinho quando tomam o lugar das mulheres ou imitam as ocupações femininas.
A oportunidade (que na vida moderna se tornou um privilégio) de brincar e crescer num mundo cotidiano composto tanto de homens como de mulheres é possível e comum para crianças que brincam em calçadas diversificadas cheias de vida. Não consigo entender por que essa situação deva ser desencorajada pelo planejamento urbano e pelo zoneamento. Ao contrário, deveria ser induzida a partir da análise das condições que estimulam a mescla e a mistura do trabalho e do comércio com as residências, assunto que retomarei mais adiante neste livro.
A fascinação das crianças pela vida nas ruas foi constatada há muito tempo por especialistas em recreação, geralmente com desaprovação. Já em 1928, a Associação de Planejamento Regional de Nova York, em relatório que é até hoje o mais exaustivo estudo norte-americano sobre recreação nas metrópoles, diz:
A análise detida em várias cidades num raio de 400 metros ao redor de playgrounds, sob um espectro amplo de situações, mostra que cerca de 1/7 da população infantil de cinco a quinze anos de idade se encontra nesses locais (…). O chamariz da rua
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um concorrente forte (…). O playground deve ser bem administrado para ter êxito na competição com as ruas, cheias de vida e aventura. A capacidade de tornar as atividades do playground tão irresistivelmente atraentes a ponto de tirar as crianças da rua e manter seu interesse dia após dia é uma qualidade rara nos recreadores, e ela deve associar personalidade e especialização de alto nível.
Mais adiante, o mesmo relatório deplora a tendência inflexível das crianças de “vadiar”, em vez de jogar “jogos reconhecidos” (reconhecidos por quem?). Esse anseio pela Organização Criança por parte daqueles que encarcerariam a recreação informal e a preferência teimosa das crianças pela vadiagem nas ruas da cidade, cheias de vida e aventura, são tão característicos hoje como em 1928.
“Conheço o Greenwich Village como a palma da minha mão”, gaba-se meu filho mais velho ao levar-me para ver uma “passagem secreta” que descobriu sob uma rua, descendo uma escada do metrô e subindo por outra, e um esconderijo secreto de uns 20 centímetros de largura, entre dois edifícios, onde ele guarda os tesouros que encontra no caminho para a escola – coisas que as pessoas jogaram fora para o lixeiro levar – para pegá-los na volta da escola. (Eu também tinha um esconderijo assim, com a mesma finalidade, quando era da idade dele, mas o meu era uma fenda num barranco no caminho da escola, em vez de uma fenda entre dois prédios, e ele encontra tesouros mais inusitados e valiosos.)
Por que as crianças acham, com tanta frequência, que perambular por calçadas cheias de vida é mais interessante do que ficar nos quintais ou nos parquinhos? Porque as calçadas são mais interessantes. É uma pergunta tão sensata quanto: por que os adultos acham as ruas cheias de vida mais interessantes que os parquinhos?
A extraordinária comodidade das calçadas é um trunfo importante também para as crianças. As crianças estão à mercê da comodidade mais do que ninguém, exceto os idosos. Boa parte da diversão das crianças ao ar livre, principalmente depois da idade escolar e de elas terem descoberto algumas atividades organizadas (esportes, artes, trabalhos manuais ou aquilo que seus interesses ou as oportunidades existentes ditarem), ocorre em horários imprevistos e deve adequar-se a isso. Grande parte da vida das crianças fora de casa desenvolve-se aos poucos. Acontece no pequeno intervalo depois do almoço. Acontece depois da escola, no momento em que as crianças podem estar pensando no que fazer e imaginando quem vai aparecer. Acontece enquanto elas esperam ser chamadas para o jantar. Acontece em breves intervalos entre o jantar e a lição de casa, ou entre a lição de casa e a hora de dormir.
Nesses momentos, as crianças dispõem e utilizam de todos os meios para exercitar-se e divertir-se. Batem com os pés em poças d’água, escrevem com giz, pulam corda, patinam, jogam bolas de gude, exibem o que têm, conversam, trocam figurinhas, jogam stoopball*, andam em pernas de pau, enfeitam patinetes feitos de caixa de sabão, desmontam carros de bebê velhos, sobem em grades, correm de um lado para o outro. Não tem sentido valorizar demais essas atividades. Não tem sentido ir a algum lugar formalmente para fazê-las de acordo com um plano formal. Parte do seu atrativo reside na sensação que as acompanha, de liberdade de vaguear para cá e para lá nas calçadas, situação diferente de estar fechado dentro de um espaço. Se for impossível desempenhá-las informal e convenientemente, elas raramente são realizadas.
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medida que as crianças crescem, essa atividade informal fora de casa – por exemplo, enquanto esperam ser chamadas para a refeição – passa a exigir menos do físico e acarreta um tempo mais prolongado com os outros, formando opinião sobre eles, flertando, conversando, provocando, empurrando, lutando. Os adolescentes são quase sempre criticados por essa maneira de matar o tempo, mas é quase impossível amadurecer sem ela. O problema aparece quando ela é praticada não na sociedade, mas como uma forma de vida marginal.
O requisito para qualquer uma dessas variedades de recreação informal não é a existência de nenhum tipo de equipamento rebuscado, mas sim de espaço num local conveniente e interessante. A brincadeira é prejudicada se as calçadas forem muito estreitas em relação ao que se exige delas. É prejudicada principalmente se as calçadas não tiverem pequenas irregularidades no alinhamento das construções. Uma parte considerável do ócio e da recreação ocorre em reentrâncias da calçada, fora do trajeto dos pedestres.
Não há sentido em planejar a recreação nas calçadas, a menos que elas sejam utilizadas para uma grande variedade de outros fins e também por uma grande variedade de outras pessoas. Esses usos são interdependentes, tanto para uma vigilância adequada, quanto para uma vida pública de certa vitalidade e interesse geral. Se as calçadas de uma rua movimentada tiverem largura suficiente, a recreação surge com força junto com os outros usos. Se as calçadas forem acanhadas, a brincadeira de pular corda é a primeira a ser prejudicada. Depois vêm os patins, os triciclos e as bicicletas. Quanto mais estreitas forem as calçadas, mais sedentária se torna a recreação informal. E mais frequentes as escapadas das crianças para a rua.
Calçadas com nove ou dez metros de largura são capazes de comportar praticamente qualquer recreação informal – além de árvores para dar sombra e espaço suficiente para a circulação de pedestres e para a vida em público e o ócio dos adultos. Há poucas calçadas com largura tão farta. Invariavelmente, a largura delas é sacrificada em favor da largura da rua para os veículos, em parte porque as calçadas são tradicionalmente consideradas um espaço destinado ao trânsito de pedestres e ao acesso a prédios e continuam a ser desconsideradas e desprezadas na condição de únicos elementos vitais e imprescindíveis da segurança, da vida pública e da criação de crianças nas cidades.
Ainda podem ser encontradas calçadas de seis metros, que geralmente impossibilitam a brincadeira de pular corda mas permitem a diversão com patins e outros brinquedos de rodas, embora os que gostam de alargar as ruas as abocanhem ano após ano (geralmente segundo a crença de que as desprezadas esplanadas e os “passeios públicos” as substituem adequadamente). Quanto mais movimentadas e atraentes forem as calçadas e quanto maior o número e a variedade de usuários, maior deverá ser a largura total para comportar seus usos satisfatoriamente.
Contudo, mesmo com a falta de espaço adequado, a localização conveniente das ruas e o interesse despertado por elas são tão importantes para as crianças – e a boa vigilância, tão importante para os pais – que elas se adaptam ao acanhado espaço da calçada. Isso não significa que seja correto tirar vantagem dessa adaptabilidade inescrupulosamente. Na verdade, é errado tanto com relação às calçadas quanto com relação às cidades.
Algumas calçadas são sem dúvida ruins para a criação das crianças. São ruins para qualquer pessoa. Nesses lugares, precisamos promover as virtudes e as instalações que propiciam segurança, vitalidade e estabilidade nas ruas. Trata-se de um problema complexo e fundamental no planejamento urbano. Em bairros com tais deficiências, enxotar as crianças para parques ou playgrounds é, além de improdutivo, uma solução ainda pior para os problemas das ruas e para as crianças.
A ideia de se livrar das ruas, desde que isso seja possível, e depreciar e menosprezar sua função social e econômica na vida urbana é uma das mais nocivas e destrutivas do planejamento urbano ortodoxo. É o máximo da ironia que ela seja posta em prática com tanta frequência em nome de fantasias nebulosas sobre a criação de crianças nas cidades.
1. A Rua Forsyth margeia o Parque Sara Delano Roosevelt, que ocupa várias quadras; o reverendo Jerry Oniki, pastor de uma igreja vizinha, foi citado pelo New York Times com referência à influência do parque sobre as crianças: “No parque há todo tipo de imoralidade que se possa imaginar.” Contudo, o próprio parque já havia recebido elogios de especialistas; entre os exemplos utilizados num artigo de 1942 sobre o barão Haussmann, que reurbanizou Paris, escrito por Robert Moses, que reurbanizou Nova York, o recém-construído Parque Sara Delano Roosevelt foi considerado um feito comparável à Rue de Rivoli de Paris !
2. Este também ganhou elogios de especialistas; foi muito reverenciado nos círculos habitacionais e arquitetônicos ao ser construído, entre 1954 e 1956, e recebeu ampla divulgação como um esplêndido exemplo de planejamento habitacional.
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Jogo baseado no beisebol que consiste em jogar a bola contra um muro e contar o número de vezes que ela pula no chão. Esse número indica a quantidade de bases percorridas. (N. do T.)

