A maldição das zonas de fronteira desertas

Usos únicos de grandes proporções nas cidades têm entre si uma característica comum. Eles formam fronteiras, e zonas de fronteira, nas cidades, geralmente criam bairros decadentes.

Esse é o capítulo 14
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Uma fronteira – o perímetro de um uso territorial único de grandes proporções ou expandido – forma o limite de uma área “comum” da cidade. As fronteiras são quase sempre vistas como passivas, ou pura e simplesmente como limites. No entanto, as fronteiras exercem uma influência ativa.

As linhas férreas são um exemplo clássico de fronteira, tanto que passaram a significar, há muito tempo, também fronteiras sociais – “do outro lado da linha do trem” –, uma conotação, coincidentemente, associada mais a cidades de pequeno porte que a cidades grandes. Aqui nos preocuparemos não com as conotações sociais das áreas demarcadas por fronteiras, mas sim com as influências físicas e funcionais das fronteiras sobre sua vizinhança urbana imediata.

No caso de uma linha férrea, o distrito que fica de um dos lados dela pode se dar melhor que o distrito que fica do outro lado. Mas os lugares que se saem pior, fisicamente, costumam ser aqueles próximos à ferrovia, de ambos os lados. Seja qual for o desenvolvimento efetivo e variado que ocorra em qualquer um dos lados, seja qual for a substituição do velho e do degradado, é mais provável que ocorram longe dessas zonas, para dentro da área urbana distante da ferrovia. As zonas desvalorizadas e decadentes que encontramos ao lado das linhas férreas nas cidades parecem afetar tudo o que se encontre dentro delas, à exceção das construções que realmente fazem uso da própria ferrovia e de suas margens. Isso é curioso, porque sempre constatamos, ao analisar os componentes do declínio e da decadência, que houve época em que as pessoas acharam correto erguer prédios novos nessa zona decadente, e até mesmo prédios ambiciosos.

A tendência ao malogro das zonas ao longo das linhas férreas normalmente tem sido justificada como consequência do barulho, da fuligem da época das locomotivas a vapor e da repulsa generalizada ao ambiente constituído pelas linhas férreas. Contudo, acho que essas desvantagens são apenas parte da causa, quem sabe, uma parte ínfima. Por que elas não desencorajaram, em princípio, que se construísse lá?

Além do mais, podemos constatar que o mesmo tipo de malogro ocorre na faixa urbana da orla marítima. O fracasso é, em geral, mais acentuado e perceptível ao longo da orla marítima do que ao longo das linhas férreas. Mesmo assim, a orla marítima não é um ambiente naturalmente barulhento, sujo ou desagradável.

  1. curiosa, também, a frequência com que as vizinhanças imediatas de grandes campi urbanos de universidades, os centros cívicos à City Beautiful, terrenos extensos de hospitais e até parques amplos manifestam tendência extraordinária ao fracasso e a frequência com que, mesmo quando não sofrem degradação material, tendem a estagnar-se – situação que precede a decadência.

Ainda assim, se o urbanismo e a teoria de ocupação do solo convencionais fossem corretos e se a quietude e a limpeza tivessem um efeito tão positivo quanto se atribui a elas, precisamente essas zonas malogradas deveriam ter um sucesso econômico estrondoso e ser socialmente ativas.

Apesar de as linhas férreas, as orlas marítimas, os campi, as vias expressas, os estacionamentos extensos e os parques amplos serem diferentes entre si, esses espaços também têm muito em comum – a tendência de se situarem em vizinhanças agonizantes e decadentes. E, se observarmos as partes das cidades literalmente mais atraentes – ou seja, aquelas que literalmente atraem pessoas, em carne e osso –, notaremos que essas localidades afortunadas raras vezes se encontram em zonas imediatamente adjacentes a usos únicos de grandes proporções.

O problema básico das fronteiras, como vizinhas da cidade, é que elas costumam formar becos sem saída para a maioria das pessoas que utilizam as ruas. Para a maioria das pessoas, elas representam, na maioria das vezes, barreiras.

Consequentemente, a rua adjacente a uma fronteira é um ponto final para o uso diversificado. Se tal rua, que é o fim da linha para as pessoas vindas da área “comum” da cidade, for pouco usada ou não tiver utilidade alguma para as pessoas que estão nessa zona de fronteira de uso único, ela estará fadada a ser um lugar morto, com poucos frequentadores. Esse marasmo pode ter outras repercussões. Como poucas pessoas utilizam a rua limítrofe, as travessas dela (e, em certos casos, a rua paralela) acabam sendo pouco usadas. Elas não conseguem gerar uma circulação normal de pessoas que transitam para além delas, em direção à fronteira, porque poucas se dirigem para esse Além. Portanto, se as ruas vizinhas se tornarem muito desertas e, em razão disso, forem evitadas, as ruas vizinhas correm o risco de ser igualmente menos utilizadas. E assim sucessivamente, até que as forças do uso constante de uma área de forte atratividade passem a contra-atacar.

As fronteiras tendem, assim, a formar hiatos de uso em suas redondezas. Ou, em outras palavras, devido ao uso supersimplificado da cidade em certo lugar, em grande escala, elas tendem a simplificar também o uso que as pessoas dão às áreas adjacentes, e essa simplificação de uso – que significa menos frequentadores, com menos opções e destinos a seu alcance – se autoconsome. Quanto mais estéril essa área simplificada se tornar para empreendimentos econômicos, tanto menor será a quantidade de usuários e mais improdutivo o próprio lugar. Tem início então um processo de desconstrução ou deterioração.

Isso é grave, porque a mistura constante e literal de pessoas, que se fazem presentes por finalidades diferentes, é o único meio de preservar a segurança nas ruas. É o único meio de cultivar a diversidade derivada. É o único meio de estimular a formação de distritos em vez de bairros ou lugares ermos fracionados, fechados e estagnados.

Uma sustentação mútua abstrata ou mais indireta de usos urbanos diferentes não atende a esses propósitos (embora, em outras circunstâncias, possa ser proveitosa).

Às vezes, os indícios visíveis do processo de degradação são quase tão gráficos como um diagrama. Isso ocorre em alguns trechos do Lower East Side de Nova York, e eles são particularmente perceptíveis de noite. Nos limites do terreno escuro e deserto dos enormes conjuntos habitacionais de baixa renda, as ruas são escuras e também vazias de pessoas. Os estabelecimentos comerciais, à exceção de uns poucos mantidos pelos próprios moradores do conjunto, fecharam as portas, e muitos imóveis estão sem uso, vazios. Rua após rua, à medida que nos afastamos das adjacências do conjunto, encontramos um pouco mais de vida, gradativamente um pouco mais de luz, mas é preciso percorrer muitas ruas até que esse aumento paulatino de atividade econômica e de movimento de pessoas se intensifique. E, a cada ano que passa, o vazio parece abocanhar um pouco mais. Os bairros ou as ruas aprisionados entre duas dessas fronteiras próximas demais podem parecer completamente mortos de uma fronteira a outra.

Às vezes um jornal noticia algum caso contundente desse processo de deterioração – como, por exemplo, esta notícia do New York Post sobre uma ocorrência de fevereiro de 1960:

O assassinato no açougue de Cohen, na esquina da Via Expressa 164 com a Rua 174, segunda-feira à noite, não foi um incidente isolado, mas o ponto culminante de uma série de roubos e assaltos na rua (…). Desde que se iniciaram, há cerca de dois anos, as obras da Via Radial do Bronx, do outro lado da rua, relatou um merceeiro, começaram os problemas (…). Os estabelecimentos que permaneciam abertos até 21 ou 22 horas estão fechando às 19 horas. Poucos consumidores se aventuram nas ruas depois de escurecer, de modo que os lojistas acham que os poucos negócios que eles perdem não justifica o risco de ficarem abertos até tarde (…). O assassinato teve grande impacto para o proprietário de uma drogaria próxima, que fica aberta até as 22 horas. “Estamos mortos de medo”, comentou ele. “Somos o único estabelecimento que fica aberto até tão tarde.”

Às vezes, podemos inferir a formação desses vazios, como quando os anúncios classificados de um jornal oferecem uma pechincha – uma casa de tijolos de dez cômodos, recém-reformada, com encanamento novo de cobre, posta à venda por 12 mil dólares – e o endereço é revelador: entre um conjunto habitacional e uma via expressa.

Às vezes, o efeito principal é o espraiamento gradativo, progressivo, rua após rua, da insegurança nas calçadas. Morningside Heights, em Nova York, tem uma faixa habitada, longa e estreita, limitada de um lado por um campus e, de outro, por um extenso parque na orla marítima. Essa faixa é, além do mais, entrecortada pelas barreiras formadas por prédios de instituições. A qualquer lugar que se vá nessa faixa logo se encontra uma fronteira. Dessas fronteiras, a mais evitada

  1. noite foi, durante décadas, a do parque. Porém, paulatina e quase imperceptivelmente, o consenso de que a insegurança era um fato afetou uma extensão cada vez maior do território, a ponto de hoje haver apenas um lado da rua em que de noite se ouvem passos mais que solitários. Essa rua de um só lado, um trecho da Broadway, fica vizinha ao perímetro morto do grande campus; e até mesmo ela fica morta em boa extensão da faixa, no local em que predomina outra fronteira.

Porém, na maioria dos casos, não há nada de tão dramático nas fronteiras desertas. Para ser mais precisa, é a vitalidade que não existe, e essa situação é encarada como natural. Eis uma boa caracterização de um vazio, descrito em The Wapshot Chronicle [A história de Wapshot], um romance de John Cheever: “Pela face norte do parque, entra-se numa vizinhança que parece empesteada – não perseguida, mas rejeitada, como se sofresse de acne ou mau hálito, e com uma constituição física ruim – sem cor, entrecortada e descaracterizada.”

Os motivos exatos da escassez de uso das zonas de fronteira são variados.

Certas fronteiras restringem o uso, ao permitir a circulação em apenas um de seus lados. Os conjuntos habitacionais são um exemplo disso. Seus moradores cruzam a fronteira para cá e para lá (geralmente, seja qual for a quantidade deles, por apenas um lado do conjunto ou, no máximo, por dois). A maioria dos moradores das vizinhanças permanece estritamente em seu lado da fronteira e encara essa divisa como uma barreira aos usos.

Certas fronteiras impedem a interação de usos de ambos os lados. Linhas férreas ou vias expressas ou cursos d’água são exemplos comuns.

Certas fronteiras têm interação de usos em ambos os lados, mas boa parte dela se restringe ao período do dia e diminui drasticamente em certas épocas do ano. Parques amplos são exemplos comuns.

Outras fronteiras têm uso escasso porque os elementos únicos marcantes que as constituem usam o solo com intensidade muito baixa em relação ao grande perímetro que possuem. Os centros administrativos com área extensa são exemplos comuns. A Comissão de Planejamento de Nova York está tentando, neste momento, instituir um parque industrial no Brooklyn e já anunciou que ele ficará numa área de 405 mil metros quadrados, que abrigará empresas com cerca de 3 mil trabalhadores. Cerca de sete trabalhadores por mil metros quadrados é um uso do solo urbano de intensidade muito baixa, e 405 mil metros quadrados formam um perímetro tão imenso, que esse empreendimento provocará uma escassez de uso em todo o seu entorno.

Seja qual for a causa desse efeito, o que importa é a escassez de uso (poucos usuários em carne e osso) ao longo de um perímetro amplo ou expandido.

O fenômeno das zonas de fronteira desertas desnorteia os planejadores urbanos, em especial aqueles que sinceramente prezam a vitalidade e a variedade urbana e detestam tanto a apatia quanto uma expansão indefinida. As fronteiras, argumentam eles, às vezes são um recurso viável para aumentar a intensidade e dar à cidade uma forma clara, nítida, como aparentemente faziam as muralhas das cidades medievais. É uma ideia plausível, porque certas fronteiras sem dúvida servem para concentrar e, portanto, intensificar áreas urbanas. Os cursos d’água de São Francisco e de Manhattan fizeram isso.

Ainda assim, mesmo que uma fronteira de vulto concentre intensidade urbana, como naqueles casos, a zona de fronteira raramente espelha essa intensidade ou reúne boa parte dela.

Conseguiremos compreender melhor esse comportamento “obstinado” se dividirmos de cabeça todo o espaço da cidade em dois tipos. O primeiro, que pode ser chamado espaço público, é utilizado para a circulação pública geral de pedestres. É um espaço em que as pessoas se movimentam livremente, por livre escolha, no percurso de um lugar a outro. Ele inclui as ruas, vários dos parques menores e às vezes os saguões de prédios, quando usados livremente como área de circulação.

O segundo tipo de espaço, que pode ser chamado de espaço especial, não é normalmente utilizado como via pública pelos pedestres. Pode ou não ter construções; pode ou não ser propriedade pública; pode ou não ser acessível às pessoas. Isso não importa. O que importa é que as pessoas andam em torno dele, ou ao longo dele, mas não através dele.

Por ora, encaremos esse espaço especial como uma coisa que está no meio do caminho, no que se refere ao conjunto de pedestres em geral. É um obstáculo geográfico, quer por ser fechado a eles, quer por ter muito pouco interesse para eles.

A partir dessa perspectiva, todo o espaço especial de uma cidade é uma interferência no uso do espaço público.

Porém, de outro ângulo, esse espaço especial contribui enormemente para o uso do espaço público. Contribui com pessoas. O solo especial provoca a circulação de todo tipo de pessoa. Faz isso por abrigá-las em moradias ou no trabalho ou por atraí-las por outros motivos. Sem construções na cidade, as ruas não têm utilidade.

Então, ambos os tipos de espaço contribuem para a circulação. Mas há sempre alguma tensão nessa inter-relação. Há sempre uma ação e uma reação entre os dois papéis principais do espaço especial: por um lado, o de contribuir para o uso do espaço público e, por outro, o de interferir nesse uso.

Esse é um princípio que os comerciantes do centro urbano compreendem muito bem há muito tempo, e, por se tratar de um princípio, é mais fácil explicá-lo com as palavras deles. Sempre que um “lugar morto” significativo surge numa rua do centro, ele provoca uma diminuição na intensidade do trânsito de pedestres e no uso da cidade naquele ponto. Às vezes, a queda tem um efeito econômico tão grave, que ocorre uma queda no comércio de um lado ou do outro do lugar morto. Esse lugar morto pode ser um espaço vazio ou algum monumento pouco utilizado, ou pode ser um estacionamento de automóveis ou simplesmente um conjunto de bancos que fecham as portas depois das 15 horas. Seja o que for especificamente, o papel do lugar morto como obstáculo geográfico para o espaço público superou seu papel de contribuir com usuários para o espaço público. A tensão diminuiu.

O espaço público consegue absorver e anular a maior parte dos efeitos dos pontos mortos do espaço especial, principalmente quando estes são fisicamente reduzidos. Variações de intensidade de intercâmbio entre o espaço especial e o público são necessárias porque pontos pequenos e calmos e progressões de pontos movimentados são uma consequência e um aspecto indispensável da diversidade das ruas e dos distritos.

Todavia, a tensão entre os dois tipos de espaço pode desfazer-se inteiramente, ou pode não ser anulada ou compensada naturalmente, se o espaço especial tornar-se um obstáculo muito grande. Quanto do espaço público ele ocupa como obstáculo físico (ou como um conjunto para usos livres)? Que concentração de usuários ele dá em troca para o espaço público? Um resultado insatisfatório dessa equação significa um vazio no solo urbano. A questão não é tanto por que a intensidade de uso seria tão inabalável a ponto de não surgir numa fronteira bem demarcada. A questão é muito mais por que devemos esperar que ela seja tão inabalável.

Além da tendência em produzir esses vazios no espaço público adjacente (e, portanto, em lugares extraordinariamente pobres para o crescimento da diversidade ou da vitalidade social), as fronteiras subdividem as cidades. Elas separam as vizinhanças da cidade “comum” que se encontram a seu lado. Nesse aspecto, atuam de modo contrário aos parques de pequeno porte. Os parques de pequeno porte, quando atraentes, alinhavam as vizinhanças ao seu redor e misturam os moradores próximos. As fronteiras também atuam de modo contrário ao das ruas, já que também elas normalmente alinhavam o território e os usos presentes em cada um de seus lados e misturam os frequentadores. As fronteiras atuam de modo contrário ao de muitos usos facilmente perceptíveis mas de pequena escala, os quais, se assim não fosse, teriam pontos comuns com as fronteiras. Por exemplo, uma estação de trem interage com as redondezas de forma diferente de uma linha férrea; um único prédio de governo interage com a vizinhança de forma diferente de um grande conjunto de prédios governamentais.

Esse efeito das fronteiras de retalhar a cidade não é em si sempre prejudicial. Se cada uma das localidades separadas por uma fronteira for suficientemente extensa para formar um distrito vigoroso, com uma combinação de usos e usuários ampla e diversificada, a separação costuma ser inócua. Na verdade, pode ser até mesmo proveitosa, como meio de orientação para as pessoas, a fim de que elas tenham na cabeça um mapa da cidade e vejam o distrito como um lugar.

Surge um problema quando os distritos (como mencionado no Capítulo 6) são cortados ou fracionados por barreiras, já que as vizinhanças separadas constituem porções debilitadas, e um distrito do tamanho de uma subcidade não consegue tornar-se funcional. Fronteiras frequentes, sejam formadas por vias expressas, instituições, conjuntos habitacionais, campi, parques industriais ou quaisquer outros usos marcantes do espaço especial, podem dessa forma reduzir a cidade a frangalhos.

Entender as desvantagens das fronteiras deve ajudar-nos a evitar a criação de fronteiras desnecessárias, como fazemos atualmente, no equívoco de que construir gratuitamente nessas fronteiras representa uma forma avançada de organização nas cidades.

No entanto, isso não quer dizer que todas as instituições ou outras instalações que retalham as cidades com barreiras e costumam rodear-se de vazios devam ser consideradas nocivas à vida urbana. Ao contrário, muitas delas são obviamente necessárias e importantíssimas para as cidades. Uma cidade grande precisa de universidades, conjuntos médico-hospitalares grandes, parques amplos com atrações para toda a metrópole. Uma cidade precisa de linhas férreas; ela pode usar a orla marítima com fins econômicos e de lazer; ela precisa de vias expressas (especialmente para o tráfego de caminhões).

A questão não é desprezar vantagens como essas ou menosprezar seu valor. É, sim, reconhecer que são benefícios dúbios.

Se neutralizarmos seus efeitos destrutivos, essas próprias instalações estarão mais bem assistidas. Para a maioria delas ou para aqueles que as utilizam, não há benefício algum em serem elas rodeadas de monotonia ou de vazios, quanto mais de decadência.

Os casos mais fáceis de corrigir, acho eu, são as zonas de fronteira que poderiam logicamente estimular um uso muito maior de seu perímetro.

Pensemos, por exemplo, no Central Park, em Nova York. Ao longo de sua face leste, há vários exemplos de uso intensivo (diurnos, na maioria) em seu perímetro ou perto dele – o zoológico, o Museu de Arte Metropolitano, o lago de barcos. Na face oeste, ocorre uma penetração curiosa do perímetro, mais perceptível por ser uma atividade noturna e ter sido criada pelos próprios frequentadores. Trata-se de uma passarela que adentra o parque, a qual se tornou, por unanimidade, um caminho para passear no fim da tarde e de noite com cachorros, e a partir daí para outros pedestres e qualquer pessoa que queira entrar no parque e se sentir segura.

No entanto, o perímetro do parque – principalmente do lado oeste – possui longos trechos vazios, que provocam um efeito ruim de esvaziamento em boa parte de seu limite. Ao mesmo tempo, o interior do parque está cheio de equipamentos que só podem ser usados durante o dia, não pelo que são, mas por sua localização. É também difícil para os frequentadores em potencial chegarem até eles. A casa de xadrez (que se parece com uma garagem lúgubre) é um exemplo. O carrossel é outro. Já às 16h30 nas tardes de inverno, os guardas afastam as pessoas desses lugares, como medida de segurança. Além do mais, essas instalações, sem falar de sua arquitetura pesada e feia, são inteiramente despropositadas nos locais em que se encontram situadas, tão para dentro do parque. É dificílimo fazer um carrossel maravilhoso ficar tão esquecido e escondido, mas se conseguiu isso no Central Park.

Usos de lazer como esses deveriam ser trazidos para as beiradas dos grandes parques e implantados como elos entre o parque e a rua adjacente. Eles podem fazer parte do mundo da rua e, pelo outro lado, do mundo do parque e ser encantadores nessa vida dupla. Eles deveriam ser projetados não como cercas fechando o parque (isso seria terrível), mas como pontos de atividade intensa e atraente nas margens. Seu uso noturno deveria ser incentivado. Eles não precisam ser imensos. Três ou quatro casas de xadrez e damas, cada uma com um traço arquitetônico e uma disposição no projeto característicos, colocadas em pontos do perímetro de um grande parque, teriam um significado muito maior, para esse fim, do que uma casa de xadrez e damas quatro vezes maior.

Também cabe ao outro lado da rua – o lado da cidade – combater os vazios provocados pelos parques. Estamos sempre ouvindo sugestões para injetar usos dúbios em parques urbanos amplos. Há sempre a pressão pela comercialização. Algumas sugestões são difíceis de entender, como a de instalar mais uma cafeteria no Central Park, que provocou grande polêmica em Nova York. Trata-se, em sentido figurado, de um caso de fronteiras, e também, em sentido literal, é um caso de fronteiras. O lugar de muitos desses usos comerciais ou semicomerciais é do lado da cidade, no limite de um parque, colocados intencionalmente para evidenciar e intensificar a interação de usos (e a vigilância) de um lado e do outro. Eles deveriam funcionar em parceria com os usos do perímetro do lado do parque: um exemplo poderia ser um rinque de patinação instalado exatamente no limite do parque, e do outro lado da rua, o lado da cidade, uma cafeteria, onde os patinadores pudessem tomar um refresco e outras pessoas pudessem acompanhar a patinação do outro lado em terraços altos, fechados ou abertos. Mais uma vez, não há razão para que o rinque e a cafeteria não possam ser usados noite adentro. É ótimo andar de bicicleta num grande parque; mas o aluguel de bicicletas deve ser feito no lado da cidade.

A questão, em resumo, deve ser procurar usos adequados à zona de fronteira e criar outros, mantendo a cidade como cidade e o parque como parque, mas tornando o inter-relacionamento deles explícito, vivo e suficientemente constante.

Esse princípio foi brilhantemente definido, com relação a outro assunto, por Kevin Lynch, professor-adjunto de planejamento do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e autor de The Image of the City [A imagem da cidade]. “Uma linha divisória pode ser mais do que simplesmente uma barreira dominante”, escreve Lynch, “se for possível ver ou mover-se através dela – se ela estiver inter-relacionada em certa profundidade com as regiões de ambos os lados. Torna-se então uma costura, não uma barreira, uma linha de permuta ao longo da qual duas áreas se alinhavam.”

Lynch referia-se a problemas visuais e estéticos relativos a fronteiras; precisamente o mesmo princípio se aplica a muitos problemas funcionais ocasionados pelas fronteiras.

As universidades poderiam tornar pelo menos alguns trechos de seus campi mais semelhantes a costuras do que a barreiras, situando os usos dirigidos ao público em pontos estratégicos de seu perímetro e também colocando nele, abertos como cenários, os elementos adequados à vista e ao interesse do público, em vez de escondê-los. Em escala reduzida, por ser uma instituição relativamente pequena, a New School for Social Research [Nova Escola de Pesquisa Social] de Nova York fez isso com um novo edifício que contém uma biblioteca. Esta é um elo entre a rua e o pequeno “campus” da escola, um pátio interno encantador. Tanto a biblioteca quanto a vista são visualmente abertas, atraem a atenção e são uma maravilha e um fator de estimulação da rua. As grandes universidades urbanas, pelo que sei, dedicaram escasso tempo e imaginação avaliando seu papel como estabelecimentos únicos. Normalmente, fingem ser locais enclausurados ou afastados, negando nostalgicamente sua mudança para a cidade, ou então fingem ser prédios de escritórios. (Claro que não são nada disso.)

Também se pode levar a orla marítima a funcionar mais como costuras do que habitualmente. A forma usual de recuperar uma orla marítima decadente e esvaziada é substituí-la por um parque, que por sua vez se torna uma fronteira – geralmente com uma falta de uso espantosa, como é de esperar –, e isso leva o efeito do vazio terra adentro. Tem mais sentido atacar o problema onde ele se origina, na costa, e procurar transformar a orla marítima em ponto de ligação. Não se deveria impedir, por trechos tão longos, que as pessoas vissem as atividades de trabalho da orla, quase sempre interessantes, o que também acaba impedindo que se veja o mar do nível do piso. Nesses trechos deveria haver aberturas pequenas, até improvisadas, para que as pessoas pudessem olhar e acompanhar o trabalho e o tráfego marítimo. Perto de casa há um velho cais aberto, o único num espaço de quilômetros, próximo a um enorme incinerador e atracadouro de chatas do Departamento de Limpeza Urbana. O cais é usado para pescar enguias, tomar banho de sol, empinar pipas, fazer funilaria de automóveis, piqueniques, vender cachorro-quente e sorvete, acenar para os barcos que passam e bater papo. (Já que o cais não pertence ao Departamento de Parques, ninguém é proibido de coisa alguma.) É impossível encontrar lugar mais alegre numa noite quente ou num domingo indolente de verão. De tempos em tempos, um barulho de ferro e coisas sendo despejadas enche o ar quando um caminhão de lixo joga sua carga numa chata. Não é o máximo dos máximos, mas é um momento que todos na doca apreciam. Fascina todas as pessoas. As entradas para os locais de trabalho do cais precisam estar exatamente onde o trabalho (carga, descarga, atracação) é feito, e não segregadas em lugares em que não há muito para ver. Passeios de barco, visitas a barcos, pescaria e natação onde forem possíveis, tudo isso constitui pontos de ligação, em vez de barreiras, para essa faixa problemática entre a terra e a água.

  1. inútil tentar converter certas fronteiras em pontos de ligação. As vias expressas e suas rampas de acesso são um exemplo. Além do mais, mesmo no caso de parques amplos, campi e zonas portuárias, os efeitos das barreiras podem ser plenamente superados apenas em certos locais de seu perímetro.

Entendo que a única maneira de combater os vazios nesses casos é dispor de forças contrárias extraordinariamente intensas nas proximidades. Isso quer dizer que a concentração populacional teria de ser deliberadamente alta (e diversificada) perto das fronteiras, que as quadras próximas deveriam ser particularmente curtas e o uso potencial da rua extremamente fluente, e que as combinações de usos principais deveriam ser abundantes, assim como a combinação de prédios de várias épocas. Isso pode não provocar uma grande intensidade de uso nas próprias zonas de fronteira, mas pode ajudar a confinar o vazio numa área reduzida. Perto do Central Park de Nova York, boa parte da Avenida Madison, no lado leste, funciona como uma força contrária ao vazio das margens do parque. Do lado oeste, não existe uma força contrária tão próxima. Do lado sul, a força contrária atua somente até a calçada oposta ao parque. No Greenwich Village, a força contrária faz com que o vazio da orla marítima se afaste gradativamente, em parte porque as quadras são de tal maneira curtas – em certos casos, 50 metros – que é fácil para a vivacidade dar mais um salto.

Empregar uma força contrária às fronteiras urbanas necessárias quer dizer o seguinte: o máximo possível de elementos urbanos deve ser usado para constituir um território misto, vivo, e o mínimo possível deve ser usado para a criação desnecessária de barreiras.

Moradias, subsidiadas ou não, salões, auditórios, edifícios governamentais, a maioria das escolas, a maioria das indústrias da cidade e todo o comércio urbano convivem bem em lugares mesclados, como integrantes essenciais da própria estrutura urbana mista, complexa. Quando tais elementos são retirados da mistura e segregados na forma de usos únicos marcantes, eles não só criam zonas de fronteira gratuitas, mas, por estarem apartados de outros elementos das mesclas urbanas, oferecem menos material para a produção de forças contrárias.

As ruas de pedestres projetadas, se constituírem barreiras para os automóveis estacionados ou em movimento em volta de áreas intrinsecamente frágeis e fragmentadas, podem ocasionar mais problemas do que solucioná-los. Ainda assim, essa ideia está na moda no planejamento de ruas de compras no centro e nos “centros urbanos” de áreas revitalizadas. Um dos perigos de traçar planos de trânsito e sistemas viários urbanos sem compreender, primeiro, como as próprias cidades funcionam é exatamente este: os planos, feitos com a melhor das intenções, não conseguem eliminar as zonas de fronteira desertas e as interrupções de uso, e exatamente nos lugares em que elas podem causar os piores e mais gratuitos danos.