Formação e recuperação de cortiços

Os cortiços e sua população são vítimas (e perpetuadores) dos problemas aparentemente intermináveis que os reforçam mutuamente. Os cortiços atuam como círculos viciosos, que, com o tempo, enredam todas as atividades da cidade. Os cortiços em expansão exigem um volume cada vez maior de dinheiro público – e não simplesmente mais dinheiro para melhorias financiadas pelo governo ou só para não piorar, mas mais dinheiro para fazer frente a um êxodo e a um retrocesso cada vez maiores. À medida que as necessidades aumentam, os recursos diminuem.

Esse é o capítulo 15
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Nossas leis vigentes de revitalização urbana são uma tentativa de romper esse encadeamento específico dos círculos viciosos por meio da erradicação pura e simples dos cortiços e de sua população, substituindo-os por conjuntos habitacionais que se pretende produzam uma receita tributária mais elevada ou seduzam uma população mais dócil com exigências públicas menos dispendiosas. Esse método não funciona. No máximo, transfere os cortiços de lugar, acrescentando matizes próprios de mais privação e desagregação. No mínimo, destrói vizinhanças onde existem comunidades construtivas que se aprimoram e onde a situação exige encorajamento, e não destruição.

Da mesma maneira que as campanhas de Preservação e Combate à Monotonia nos bairros que estão virando zona de cortiços, sua remoção fracassa por tentar superar as causas do problema manipulando os sintomas. Às vezes, mesmo os próprios sintomas que preocupam quem promove a remoção de cortiços são, fundamentalmente, mais resquícios de problemas antigos do que indícios significativos de males atuais ou futuros.

O planejamento urbano convencional trata os cortiços e seus habitantes de forma inteiramente paternalista. O problema dos paternalistas é que eles querem empreender mudanças muito profundas e optam por meios superficiais e ineficazes. Para solucionar o problema dos cortiços, precisamos encarar seus habitantes como pessoas capazes de compreender seus interesses pessoais e lidar com eles, o que certamente são. Precisamos discernir e levar em consideração as forças de recuperação existentes nos próprios cortiços e evoluir a partir delas, o que comprovadamente funciona nas cidades reais. Isso é muito diferente de tentar encaminhar condescendentemente as pessoas para uma vida melhor, e muito diferente do que é feito hoje.

Sem dúvida, é difícil compreender os círculos viciosos. Causa e efeito confundem-se exatamente porque se encadeiam e tornam a encadear-se de modo extremamente complexo.

Ainda assim, existe um elo crucial. Se ele for rompido (e rompê-lo não é uma simples questão de fornecer moradias melhores), os cortiços se recuperam espontaneamente.

O elo-chave nos cortiços permanentes é que muitas pessoas os abandonam o mais rápido possível – e nesse meio-tempo sonham em sair deles. É esse elo que deve ser rompido se todos os outros esforços de melhorar os cortiços ou a vida neles forem pouco efetivos. Precisamente esse elo foi quebrado e continuou assim em lugares como o North End, o Back-of-the-Yards, em Chicago, ou North Beach, em São Francisco, ou a antiga área de cortiços recuperados em que resido. Se pelo menos alguns dos cortiços urbanos norte-americanos tivessem conseguido romper esse elo, poderíamos ver isso, embora ceticamente, como um motivo de esperança. Seria preciso haver ousadia nesses lugares. Mais significativo é o grande número de zonas de cortiços em que a recuperação se inicia, passa despercebida e geralmente é desencorajada ou aniquilada. Em Nova York, os trechos do East Harlem que haviam progredido na recuperação foram em princípio desencorajados por falta de dinheiro; depois, nos locais em que essa carência reduziu o ritmo do processo de recuperação mas não provocou o retrocesso às condições anteriores, a maioria dessas vizinhanças foi arrasada sem meios-termos – para dar lugar a conjuntos habitacionais que se tornaram um mostruário quase patológico dos problemas dos cortiços. Muitas áreas do Lower East Side que começaram a recuperar seus cortiços foram demolidas. Meu bairro, no início dos anos 50, foi salvo de uma amputação desastrosa só porque os cidadãos tiveram condições de brigar na prefeitura – e, mesmo assim, só porque se apresentou uma prova embaraçosa para as autoridades de que a região estava atraindo mais pessoas com poder aquisitivo, embora essa evidência de sua recuperação fosse provavelmente a menos significativa das mudanças construtivas que passaram despercebidas1.

Na edição de fevereiro de 1959 da publicação do Instituto Americano de Urbanistas, Herbert Gans, sociólogo da Universidade da Pensilvânia, traçou um retrato moderado mas pungente de uma zona de cortiços em processo de recuperação não reconhecido, o West End de Boston, às vésperas de sua demolição. O West End, assinala ele, apesar de tido pelas autoridades como “uma zona de cortiço”, poderia ser descrito com mais propriedade como uma “área de baixa renda estável”. Segundo Gans, se se define uma zona de cortiços como um lugar que “devido à natureza de seu meio social pode provocar problemas e perturbações”, então o West End não é uma zona de cortiços. Ele menciona a ligação intensa dos moradores com o distrito, seu controle social informal bastante avançado, o fato de muitos moradores terem modernizado e reformado o interior dos apartamentos – todas elas características típicas de zonas de cortiços em fases de recuperação.

A recuperação depende, paradoxalmente, da permanência nos cortiços de uma parcela substancial de seus habitantes. Depende de um número substancial de moradores e comerciantes da área de cortiços decidir se é tanto desejável como prático fazer e realizar seus planos lá mesmo ou se todos realmente devem mudar-se para outro lugar.

Utilizo o termo cortiços permanentes para descrever aqueles que não dão mostras de avanço social ou econômico com o passar dos anos ou então que retrocedem após uma pequena melhora. No entanto, se for possível introduzir, numa zona de cortiços, condições para gerar diversidade urbana e se quaisquer manifestações de recuperação forem incentivadas, em vez de refreadas, acredito não haver razão alguma para que qualquer cortiço seja permanente.

A incapacidade de uma zona de cortiços permanentes de manter uma quantidade suficiente de seus habitantes para se recuperar é um traço que se manifesta antes que os próprios cortiços se formem. Existe a crença infundada de que esses bairros, ao se formar, substituem malignamente o tecido sadio. Não pode haver inverdade maior.

O primeiro indício de degradação num bairro, muito antes de qualquer evidência ser perceptível, são a estagnação e a monotonia. Os bairros monótonos são invariavelmente abandonados pelos moradores mais ativos, ambiciosos e ricos e também pelos jovens que têm condições de sair de lá. Esses bairros invariavelmente não conseguem atrair novos moradores que se mudaram por livre escolha. Além do mais, com exceção dessas deserções seletivas e da falta seletiva de sangue novo e vigoroso, tais bairros podem acabar sofrendo um êxodo repentino e indiscriminado dos que não habitam cortiços. As razões disso já foram apresentadas; não é necessário reiterar a total falta de proveito da Grande Praga da Monotonia na vida urbana.

Atualmente, o êxodo indiscriminado daqueles que não habitam cortiços, que constitui a primeira oportunidade para a formação desse tipo de bairro, é às vezes atribuída à proximidade de outros cortiços (especialmente se forem habitados por negros) ou à presença de algumas famílias de negros, quase da mesma maneira que no passado se atribuía a formação de cortiços à presença ou à proximidade de famílias italianas, judias ou irlandesas. Às vezes a debandada é atribuída à idade, à obsolescência das construções ou a desvantagens genéricas, vagas, como a falta de playgrounds ou a proximidade de fábricas.

Contudo, todos esses fatores são irrelevantes. Em Chicago, podemos ver bairros a uma ou duas quadras apenas da área gramada à beira do lago, longe das comunidades minoritárias, bem servidos de áreas verdes, silenciosos a ponto de dar calafrios e compostos de construções sólidas, até pretensiosas. Nessas vizinhanças se encontram as verdadeiras evidências do êxodo: “Aluga-se”, “Vago”, “Quartos para hóspedes permanentes e temporários”, “Aceitam-se hóspedes”, “Quartos”, “Quartos mobiliados”, “Quartos sem mobília”, “Alugam-se apartamentos”. Esses prédios têm dificuldade de atrair moradores numa cidade em que os cidadãos negros são cruelmente amontoados sob um teto e sob ele cruelmente espoliados. Os prédios não atraem ninguém porque se destinam ao aluguel ou à venda unicamente para brancos – e os brancos, que têm poder de escolha muito maior, não querem saber de morar aí. Os beneficiários desse mesmo impasse, pelo menos no momento, acabam sendo os migrantes matutos, cujo poder aquisitivo é pequeno e cuja familiaridade com a vida urbana é ainda menor. Eles obtêm uma vantagem dúbia: herdam bairros monótonos e perigosos, cuja inadequação para a vida urbana repeliu moradores mais exigentes e capazes do que eles.

Às vezes, existe indubitavelmente uma trama deliberada para substituir a população de um bairro – feita por corretores de imóveis que praticam a falcatrua de comprar por uma ninharia casas de brancos assustados e vendê-las a preços exorbitantes à população negra, frequentemente maltratada e carente de moradias. Mas mesmo essa falcatrua só funciona em bairros já estagnados e desvitalizados. (Às vezes a falcatrua envolve falsear o estado de conservação do bairro, quando os moradores serão cidadãos negros em geral mais capazes e em melhor situação econômica do que os brancos que eles substituirão. Mas a economia espoliadora às vezes resulta na troca de um bairro deserto, apático, por um bairro superpopuloso consideravelmente tumultuado.)

Não houvesse moradores de cortiços ou imigrantes pobres para herdar os fracassos urbanos, o problema dos bairros desvitalizados, abandonados pelos que têm opção, existiria do mesmo jeito e talvez fosse ainda mais preocupante. Pode-se constatar essa situação em bairros estagnados de Filadélfia, nos quais as moradias “decentes, seguras e limpas” ficam vazias à medida que seus antigos moradores se mudam para bairros mais periféricos, intrinsecamente pouco diferentes dos anteriores, a não ser por não estarem circundados pela cidade.

  1. fácil perceber onde novos cortiços estão se formando espontaneamente hoje em dia e quão monótonas, sombrias e uniformes são as ruas em que eles costumam se formar, porque o processo está acontecendo agora. O que é mais difícil de perceber, por pertencer ao passado, é o fato de que a falta de uma urbanidade cheia de vida tem sido geralmente a característica essencial das zonas de cortiços. A literatura clássica sobre cortiços nada revela a respeito. Tal literatura – a Autobiography, de Lincoln Steffens, é um bom exemplo – focaliza zonas de cortiços que já haviam superado a apatia inicial (mas tinham arranjado novos problemas nesse ínterim). Um cortiço apinhado e movimentado foi pinçado num momento específico, e se tirou uma conclusão profundamente equivocada de que um cortiço é o que sempre foi – e é o que será, a menos que seja arrasado de alto a baixo.

A antiga área de cortiços recuperados em que moro era um lugar apinhado como esse nas primeiras décadas deste século – e sua gangue, os Hudson Dusters [Faxineiros da Hudson], era notória por toda a cidade –, mas sua vida de cortiço não começou com tal ímpeto. A história da capela episcopal, poucas quadras abaixo na rua, conta a história da formação dos cortiços, neste caso há cerca de um século. O bairro fora um lugar de chácaras, ruas típicas de vilarejos, casas de verão, e se transformara em semissubúrbio, ficando incrustado na cidade, que avançava rápido. Pessoas negras e imigrantes europeus moravam ao redor do bairro, o qual nem física nem socialmente estava preparado para assimilar sua presença – tanto quanto, aparentemente, um semissubúrbio de hoje está. Em princípio, muitas famílias da congregação religiosa começaram a mudar-se dessa área residencial tranquila – um lugar encantador, pelo que mostram as fotos antigas. Os membros da congregação que permaneceram acabaram tomados pelo medo e foram embora em massa. O prédio da igreja ficou para a paróquia da Trindade, que o utilizou como capela missionária para assistir os pobres que herdaram o semissubúrbio. A antiga congregação abriu uma igreja nova em local distante, no norte da cidade, e criou em suas redondezas uma área residencial tranquila e inacreditavelmente monótona, que hoje faz parte do Harlem. Os registros não dizem onde esses peregrinos construíram os pré-cortiços seguintes.

Os motivos da formação dos cortiços e o processo que faz com que se formem mudaram surpreendentemente pouco ao longo das décadas. A novidade é que os bairros inadequados tendem a ser mais rapidamente abandonados, e os cortiços costumam expandir-se mais esparsamente e para mais longe do que ocorria na época anterior aos automóveis e às hipotecas avalizadas pelo governo para melhorias nos subúrbios, época em que era menos conveniente para as famílias abastadas abandonarem bairros que já mostravam algumas das circunstâncias normais e inevitáveis que acompanham a vida urbana (como a presença de estranhos), mas nenhum dos meios naturais de transformar essas circunstâncias em vantagens.

No momento em que as zonas de cortiços se formam, sua população pode crescer assustadoramente. Isso, porém, não é um sinal de atratividade. Ao contrário, significa que as moradias estão ficando superlotadas; isso ocorre porque as pessoas com menos opções, forçadas a amontoar-se devido à pobreza e à discriminação, mudam-se para uma área desprezada.

A densidade das unidades de domicílios pode ou não aumentar. Nos cortiços antigos, essa densidade costumava aumentar por causa da construção de prédios de apartamento. Mas o aumento da densidade habitacional não costumava diminuir a superlotação. Ao contrário, a população total aumentava bastante, e a superlotação ultrapassava a alta densidade habitacional.

Uma vez formados os cortiços, o padrão de emigração que os fez surgir tende a se manter. Da mesma maneira que no caso da emigração das zonas de pré-cortiços, ocorrem dois tipos de movimento. As pessoas bem-sucedidas, inclusive as que recebem renda muito modesta, continuam indo embora. Mas existe também a possibilidade de migrações em massa periódicas, quando uma população inteira passa a receber uma renda modesta. Ambos os movimentos são prejudiciais, o segundo claramente mais que o primeiro.

A superlotação, que é um sintoma da instabilidade populacional, persiste. Persiste não porque as pessoas que vivem em superlotação permaneçam, mas porque vão embora. Muitas das que superaram a situação econômica que as levou à superlotação mudam-se, em vez de melhorar sua moradia no bairro. Rapidamente, o lugar delas é tomado por outras pessoas, cuja situação econômica não lhes dá alternativa. Os prédios, naturalmente, deterioram-se, sob tais condições, com uma rapidez desproporcional.

Os moradores dos cortiços permanentes são constantemente substituídos dessa forma. Às vezes a substituição é marcante porque as emigrações e imigrações por fatores econômicos acarretam uma mudança étnica. Porém, o movimento ocorre em todos os cortiços permanentes, mesmo naqueles em que o contingente étnico permanece estável. Por exemplo, uma área de cortiços de negros numa cidade grande, como o centro do Harlem, em Nova York, pode manter essa condição por muito tempo, mas sofre uma rotatividade enorme, seletiva, da população.

As saídas constantes, é claro, deixam mais do que vagas por preencher. Deixam a comunidade num estágio embrionário eterno, ou num retorno eterno a uma infância desassistida. A idade dos prédios não é um parâmetro para a idade da coletividade, que se define pela permanência das pessoas.

Nesse sentido, os cortiços permanentes estão sempre indo para trás em vez de irem para a frente, circunstância que reforça a maioria de seus outros problemas. Em certos casos drásticos de rotatividade indiscriminada, tem-se a impressão de que o que está recomeçando mal pode constituir uma comunidade de pessoas, mas um acampamento de selvagens. Isso acontece quando a grande massa de novos moradores tem, antes de mais nada, muito pouco em comum, e os que são mais intransigentes e rudes passam a ditar as regras. Quem não gostar desse acampamento – o que evidentemente diz respeito a quase todos, tal a rotatividade nesses lugares – ou se muda o mais rápido possível ou sonha em se mudar. Porém, mesmo em tais ambientes aparentemente irrecuperáveis, caso se consiga manter a população, inicia-se uma lenta melhora. Sei de uma rua em Nova York onde isso está ocorrendo, mas é dificílimo que um número suficiente de pessoas permaneça.

O movimento regressivo dos cortiços permanentes acontece tanto nos planejados quanto nos espontâneos. A diferença principal é que a superlotação permanente não é uma das manifestações dos cortiços planejados, porque o número de pessoas por domicílio é controlado. Harrison Salisbury, numa série de artigos no New York Times sobre a delinquência, descreveu como funciona o elo crucial do círculo vicioso, neste caso, em conjuntos habitacionais de baixa renda:

  1. Em várias oportunidades (…) os cortiços foram fechados com tijolos e aço novos. O horror e a privação foram enclausurados em paredes novas e frias. Num esforço concentrado de solucionar um problema social, a comunidade conseguiu intensificar alguns males e criar outros ainda. A admissão em conjuntos habitacionais de baixa renda é regulamentada fundamentalmente pelas faixas de renda (…). A segregação é imposta não pela religião ou pela cor da pele, mas pela faca de dois gumes da renda ou da falta dela. É inacreditável o que isso provoca na estrutura social da comunidade. Famílias capazes, em ascensão, são constantemente expulsas (…). No funil de entrada, os níveis sociais e econômicos tendem a baixar cada vez mais (…). Forma-se uma armadilha humana, que fomenta males sociais e exige assistência externa perpétua.

Os construtores têm sempre a esperança de que esses cortiços planejados melhorem na medida em que “haja tempo para uma comunidade se formar”. Mas o tempo, tanto aí como em um cortiço permanente espontâneo, é um eterno desagregador, não um construtor. Como era de esperar, portanto, os piores exemplos de cortiços emparedados, como o que Salisbury descreveu, são quase sempre os conjuntos habitacionais mais antigos, onde houve mais tempo para o retrocesso sistemático dos cortiços permanentes operar.

Todavia, começa a surgir uma mudança sinistra nesse padrão. Com o aumento da rotatividade em cortiços planejados e da proporção de pessoas “transferidas” nos novos conjuntos habitacionais, hoje estes às vezes têm início já com a tristeza e o desânimo típico dos antigos conjuntos habitacionais ou dos antigos cortiços permanentes espontâneos – como se, na juventude, já houvessem sido submetidos às vicissitudes de muitas rupturas e desagregações. Isso provavelmente ocorre porque vários de seus moradores já viveram essa experiência e, claro, carregam-na em sua bagagem emocional. Ellen Lurie, do Núcleo Comunitário Union, comenta, com relação às condições de um novo conjunto habitacional:

  1. fácil fazer uma observação depois de todas as visitas a moradores locais [famílias instaladas em moradias públicas porque suas antigas casas foram desapropriadas para reurbanização]. Tão difícil quanto administrar é o trabalho de gerir um conjunto habitacional vasto, com grande quantidade de pessoas em princípio descontentes, iradas com o Departamento de Habitação por tê-las desalojado à força, sem compreender inteiramente as razões da mudança, solitárias e inseguras num ambiente novo e estranho – tais famílias devem fazer da administração do conjunto habitacional um trabalho ainda mais árduo.

Nem o fato de remover cortiços nem o de emparedá-los rompe aquele elo-chave de sua perpetuação – a tendência (ou necessidade) das pessoas de sair dali o mais rápido possível. Aqueles dois recursos simplesmente agravam e intensificam o caminho do eterno retrocesso. Só a recuperação é capaz de vencer os cortiços urbanos norte-americanos, ou tem conseguido vencê-los. Se a recuperação não existisse, seríamos obrigados a inventá-la. Porém, já que existe e funciona, a questão é fazer com que ocorra mais rápido e em maior número de lugares.

O ponto de partida para a recuperação é o cortiço ser suficientemente ativo para desfrutar a vida urbana e a segurança das ruas. O pior ponto de partida são os lugares monótonos que geram cortiços, em vez de recuperá-los.

O motivo de os moradores de cortiço neles permanecerem por livre escolha, depois de não ser mais necessário, do ponto de vista financeiro, está relacionado com o contexto de sua vida pessoal, um âmbito que urbanistas e planejadores não podem atingir ou influenciar diretamente – nem deveriam. A escolha tem muito a ver com as relações dos moradores de cortiços com outras pessoas, com o fato de acreditarem que permanecerão na vizinhança e com sua avaliação do que é mais ou menos importante em sua vida.

Indiretamente, porém, o desejo de permanecer é obviamente influenciado pelos fatores concretos do bairro. A acalentada “segurança” do lar é, em parte, uma segurança literal em relação ao medo físico. As zonas de cortiços cujas ruas são desertas e assustadoras, provocando insegurança no indivíduo, não se recuperam voluntariamente. E, mais que isso, as pessoas que permanecem numa zona de cortiços em processo de recuperação e melhoram sua moradia manifestam com isso intenso apego ao bairro. Ele é um elemento importante em sua vida. Essas pessoas parecem pensar que seu bairro é único – não há nada no mundo que o substitua – e extremamente valioso, apesar das deficiências. Nisso elas têm razão, porque a profusão de relacionamentos e de figuras públicas que constituem um bairro vivo é sempre única, complexa e irreproduzível. Bairros recuperados ou em via de recuperação são lugares complexos, muito diferentes dos lugares mais banais e fisicamente estereotipados nos quais os cortiços costumam formar-se.

Não quero com isso dizer, no entanto, que toda zona de cortiços que ganhe diversidade adequada e uma vida suficientemente atrativa e apropriada se recupere automaticamente. Algumas não conseguem – ou, o que é mais comum, iniciam a recuperação por algum tempo, o processo mostra-se inviável devido à existência de muitos empecilhos (na maioria financeiros) para chegar às mudanças necessárias, e o local regride ou talvez se degrade.

Em todo caso, nos lugares em que o apego aos cortiços se torna suficientemente forte para estimular a recuperação, esse apego tem início antes da recuperação. Se as pessoas tencionarem ficar por livre escolha, quando têm esse poder, precisam desenvolver esse apego antes disso. Depois, é tarde demais.

Um dos primeiros indícios de que as pessoas estão permanecendo espontaneamente pode ser uma queda na população não acompanhada nem por um aumento de moradias vagas nem pelo decréscimo da densidade habitacional. Em suma, determinado número de moradias é ocupado por menos pessoas. Paradoxalmente, isso é um indício de atratividade. Significa que os habitantes que viviam em superlotação e tiveram condições financeiras de se livrar dela estão permanecendo no bairro, em vez de o abandonarem para uma nova leva de superlotação.

Sem dúvida, a queda na população também representa a saída de pessoas, e isso também é importante, como veremos. Mas o fato significativo é que as vagas deixadas pelos que saem estão sendo preenchidas, em quantidade apreciável, por aqueles que ficam por livre escolha.

Na região em que moro, a qual, aliás, foi uma área de cortiços de irlandeses, a recuperação já estava bem encaminhada em 1920, quando a população, segundo dados da nossa área censitária, havia decrescido de 6.500, em 1910 (o ponto máximo), para 5 mil. Na Depressão, a população aumentou um pouco com a aglomeração das famílias, mas, em 1940, ela havia caído para 2.500 e continuava perto disso em 1950. Durante esse período, houve poucas demolições nessa área censitária, mas algumas reformas; houve poucos domicílios vagos em qualquer desses anos; e, na sua grande maioria, a população era composta por aqueles que moravam no bairro desde 1910 e por seus filhos e netos. A queda para menos da metade do máximo atingido pelos habitantes dos cortiços era principalmente uma indicação do grau de desconcentração populacional que ocorreu num bairro com alta densidade habitacional na zona residencial. Indiretamente, representava também um aumento da renda e do poder de escolha das pessoas que permaneceram.

Reduções populacionais similares ocorreram em todos os bairros em recuperação do Greenwich Village. Nos apartamentos outrora incrivelmente superlotados do South Village, que era uma zona de cortiços de italianos, a população caiu, numa área censitária ilustrativa, de quase 19 mil, em 1910, para cerca de 12 mil, em 1920, aumentou de novo para quase 15 mil, durante a Depressão, e depois, na época da prosperidade, reduziu-se e permaneceu em torno de 9.500. Como no meu bairro, essa queda devida à recuperação não representava a substituição da antiga população por uma população nova e diferente, de classe média. Representava, sim, a ascensão à classe média de boa parte da antiga população. Nas duas áreas censitárias que escolhi como exemplos do grau de recuperação porque o número dos domicílios em si permaneceu bastante estável, a população infantil decresceu um pouco menos, proporcionalmente, à população total; eram crianças, em maioria, de famílias que permaneceram2.

A descompactação populacional ocorrida no North End de Boston é perfeitamente comparável àquela que ocorreu durante a recuperação do Greenwich Village.

Para ter certeza de que a descompactação ocorreu, ou está ocorrendo, e se a queda na população é indício do gosto pelo bairro daqueles que o conhecem melhor, é preciso determinar se a queda foi acompanhada da desocupação de um número considerável de moradias. Por exemplo, em certas partes do Lower East Side (nunca em todas), as reduções populacionais na década de 30 se deveram parcialmente à descompactação. Representaram também um número grande de imóveis vazios. Quando estes foram novamente ocupados, quem os ocupou foi uma população superaglomerada, como era de esperar. Eles haviam sido desocupados por pessoas com poder de escolha.

Quando um número razoável de moradores decide permanecer em cortiços espontaneamente, várias outras coisas importantes começam a acontecer.

A própria comunidade ganha competência e força, em parte devido à experiência e ao aumento da autoconfiança e, depois, por ter-se tornado menos provinciana (isso leva muito mais tempo). Esses assuntos ficaram no Capítulo 6, a discussão sobre os bairros.

Neste ponto eu gostaria de enfatizar a terceira mudança que ocorre, implícita na eventual diminuição do provincianismo. Essa mudança é a diversificação progressiva da própria população.

  1. variado o grau de melhora financeira e educacional daqueles que permanecem em cortiços em processo de recuperação. A maioria tem renda modesta; alguns, renda considerável; outros não têm renda alguma. As qualificações, os interesses, as atividades e as relações distintas fora do bairro variam e se diferenciam com o passar do tempo.

As autoridades municipais atualmente não param de falar em “atrair de novo a classe média”, como se ninguém fosse de classe média até sair da cidade e comprar um sítio e uma churrasqueira e tornar-se, assim, valioso. Sem dúvida as cidades estão perdendo a população de classe média. No entanto, elas não precisam “atrair de novo” a classe média e cuidar muito bem dela, como num crescimento artificial. As cidades é que fazem a classe média crescer. Porém, cuidar dela à medida que cresce, cuidar dela como força estabilizadora em forma de população diversificada significa valorizar o povo da cidade e considerá-lo digno de permanecer exatamente onde se encontra, antes que ele se transforme em classe média.

Mesmo os que continuam pobres nos cortiços em erradicação saem ganhando com o processo de recuperação – e portanto fazem a cidade também ganhar. Na nossa região, os mais desafortunados ou menos ambiciosos da população inicial dos cortiços, que de outra forma seriam moradores permanentes desse tipo de bairro, felizmente escaparam desse destino. Além do mais, embora essas pessoas de baixo poder aquisitivo dificilmente sejam bem-sucedidas sob qualquer perspectiva, na vizinhança a maioria delas é bem-sucedida. Constituem um componente crucial da rede pública informal. A quantidade de tempo que elas passam observando as ruas e tomando conta delas nos faz parecer parasitas.

De tempos em tempos, num bairro recuperado ou em via de recuperação, costuma haver novos incrementos de imigrantes pobres ou ignorantes. O banqueiro de Boston, que citei na introdução deste livro, zombava do North End porque “ele ainda está recebendo imigrantes”. Nosso bairro também.

Esse é outro dos grandes benefícios prestados pela recuperação. As pessoas se adaptam e são assimiladas – não numa torrente indigesta, mas em acréscimos paulatinos – em bairros capazes de receber gente de fora e lidar com ela de modo civilizado. Os imigrantes – os da nossa vizinhança são na maioria porto-riquenhos, que constituirão uma boa classe média que a cidade não se pode dar ao luxo de perder – não conseguem escapar de grande parte do problema de serem imigrantes, mas pelo menos conseguem escapar à privação e à desmoralização dos cortiços permanentes. Eles logo se misturam à vida das ruas e são interessados e eficientes na parte que lhes cabe. Essas mesmas pessoas dificilmente poderiam agir dessa maneira em sua comunidade nem tenderiam a ficar no mesmo lugar por tanto tempo se fizessem parte de uma tumultuada nova leva de moradores de cortiços permanentes.

Outros que ganham com a recuperação são os novos moradores que têm poder de escolha. Eles encontram um lugar para viver que é apropriado à vida urbana.

Ambos os tipos de novos moradores ampliam a diversificação da população de uma vizinhança recuperada ou em via de recuperação. Porém, a base indispensável para essa diversidade populacional ampliada são a diversificação e a estabilidade da própria população que já morava nos cortiços.

No início do processo de recuperação, poucos, se é que algum, dos moradores de cortiço visivelmente mais bem-sucedidos – ou seus filhos mais bem-sucedidos e ambiciosos – tendem a ficar. A recuperação começa com aqueles que têm renda mais modesta e com aqueles cujas relações pessoais se sobrepõem a sua realização individual. Mais tarde, com a melhora, o nível de sucesso ou de ambição daqueles que permanecem talvez aumente substancialmente.

A perda dos mais bem-sucedidos ou mais ousados é, de modo peculiar, igualmente imprescindível para a recuperação, penso eu. Isso porque os que vão embora estão superando um dos problemas terríveis da maior parte da população que mora em cortiços – o ônus da discriminação.

A pior discriminação atualmente é, sem dúvida, contra os negros. Mas se trata de uma injustiça que a população de todas as nossas maiores zonas de cortiços teve de enfrentar em certo grau.

Um gueto, pelo próprio fato de ser gueto, é um lugar em que a maioria das pessoas corajosas, especialmente os jovens que desconhecem a resignação, recusa-se a permanecer inteiramente de bom grado. Isso é fato, independentemente de as condições de moradia e o ambiente social virem a ser satisfatórios. Elas talvez tenham de ficar e talvez diversifiquem o gueto consideravelmente. Mas isso está longe de significar aceitação ou uma relação satisfatória. É uma felicidade, em minha opinião, que tantos moradores dos nossos guetos não sejam resignados ou derrotistas; teríamos muito mais com que nos preocupar como sociedade se conseguíssemos escapar impunes às nossas tendências a uma psicologia da raça superior. Mas, seja como for, o fato é que em nossos guetos vivem pessoas corajosas, e elas não gostam de guetos.

Quando a prole mais bem sucedida do gueto consegue romper a discriminação contra ele no distrito, aí o velho bairro se livra de um grande fardo. Então, permanecer lá não é mais, necessariamente, uma manifestação de inferioridade. Pode ser uma manifestação de opção genuína. No North End, exemplificando o que quero dizer, um açougueiro jovem explicou-me detidamente que não era mais depreciativo viver lá. Para comprovar esse aspecto, ele me levou à porta do açougue, apontou uma casa geminada de três andares mais abaixo na quadra, contou-me que a família que morava lá acabara de gastar 20 mil dólares para reformá-la (tirados da poupança!) e acrescentou: “Aquele sujeito tem condições de morar em qualquer lugar. Hoje, se ele quisesse, poderia se mudar para um subúrbio de classe alta. Ele quer ficar aqui. Sabe como é, as pessoas não são obrigadas a ficar. Ficam porque gostam.”

O rompimento efetivo da discriminação externa em relação a uma zona de cortiços e uma diversificação menos drástica dentro da própria zona de cortiços em via de recuperação ocorrem simultaneamente. Se os Estados Unidos, com relação aos negros, deram realmente um basta a esse processo e entraram numa fase de desenvolvimento contido – acho ambas as coisas tão improváveis quanto intoleráveis –, então pode ser que os cortiços de negros não consigam de fato recuperar-se como aqueles habitados por outras etnias e misturas populacionais. Nesse caso, o prejuízo das cidades seria a menor das nossas preocupações; a recuperação de zonas de cortiços é um subproduto de outro tipo de vitalidade e de outras formas de mudança econômica e social.

Quando uma área se recupera, é fácil esquecer como ela era degradada e que tanto ela quanto sua população eram consideradas irrecuperáveis. Dessa suposta total falta de importância já foi objeto a área em que resido. Não vejo razão para acreditar que os cortiços de negros não consigam também superar-se, e mais rapidamente do que os antigos, se se compreender e apoiar o processo necessário. Assim como em outros bairros degradados, a superação da discriminação vinda de fora dos cortiços e a recuperação interna devem ocorrer concomitantemente. Um não pode esperar pela realização do outro. Qualquer redução da discriminação vinda do lado de fora contribui para a recuperação do cortiço do lado de dentro. Os dois caminham juntos.

Os instrumentos inerentes necessários para a recuperação do cortiço – progresso e diversificação da população – existem comprovadamente no meio das pessoas negras, inclusive daquelas que moram em cortiços e aquelas que passaram por eles, e tão visivelmente quanto no meio dos brancos. De certo modo, a existência clara e comprovada desses instrumentos é mais notável entre os negros, porque eles ascendem apesar dos obstáculos imensos contra a sua ascensão. Na verdade, em razão do próprio fato de que a população negra ascende, diversifica-se e tem muita coragem para conviver em guetos, nossos centros urbanos já perderam muito mais da classe média negra do que poderiam dar-se ao luxo de perder.

Acho que os centros urbanos continuarão perdendo boa parte da classe média negra quase com a mesma rapidez com que ela se forma, até que, de fato, a decisão de permanecer aí não mais signifique para o negro a aceitação implícita da condição de cidadão de gueto. Resumindo, a recuperação de cortiços é, pelo menos diretamente – assim como indiretamente –, inibida pela discriminação. Quero lembrar aqui aos leitores, sem repeti-la, uma questão levantada no início deste livro, nas páginas 77 e 78, que relacionava o aspecto urbano do uso da rua e da vida nas ruas com a possibilidade de superar a discriminação residencial.

Embora nós, norte-americanos, falemos muito da nossa rapidez em assimilar as mudanças, isso não se aplica, receio eu, à mudança intelectual. Geração após geração, as pessoas que não moram em cortiços apegam-se às mesmas ideias insensatas sobre eles e seus moradores. Os pessimistas parecem sempre achar que há um quê de inferioridade nas atuais safras de moradores de cortiços e conseguem apontar diferenças supostamente medonhas entre eles e os imigrantes que os antecederam. Os otimistas parecem sempre achar que não há nada de errado com os cortiços que não possa ser corrigido com programas habitacionais e com uma reforma no uso do solo e assistentes sociais em número suficiente. É difícil dizer qual simplismo é pior.

A diversificação da população reflete-se na diversificação dos empreendimentos comerciais e culturais. A diversificação de renda, sozinha, pesa no leque de diversificações comerciais possíveis, geralmente da maneira mais modesta. Como exemplo, veja o caso de um sapateiro de Nova York que não se mudou quando a maioria de sua vizinhança foi despejada para a construção de um conjunto habitacional de baixa renda. Depois de manter por muito tempo a esperança de que novos fregueses aparecessem, ele está fechando as portas. Ele conta o que houve: “Eu costumava receber daquelas boas botas de trabalho, calçados que valia a pena consertar. Mas esses novos moradores, mesmo os que trabalham, são todos muito pobres. Os sapatos que eles usam são tão baratos e fracos que logo se desfazem. Eles os trazem para mim. Não dá para consertar sapatos assim. O que posso fazer com eles, fazê-los de novo? Mesmo assim, os moradores não têm como pagar pelo serviço. Este lugar não me serve.” A antiga vizinhança também poderia ser definida como predominantemente pobre, mas havia pessoas que tinham uma renda razoável. Não se tratava do grupo dos paupérrimos.

Nos cortiços em via de recuperação em que ocorreram grandes reduções na população com a diminuição de habitantes por domicílio, esse fato foi acompanhado de um aumento diretamente relacionado com a diversidade de renda – e às vezes de um aumento considerável no número de visitantes e na interação de usos com outros bairros e distritos. Sob tais circunstâncias, as grandes reduções na população (que, sem dúvida, ocorreram de forma gradativa, e não repentina) não provocaram a aniquilação do comércio. Ao contrário, a variedade e a prosperidade das empresas costumam aumentar nos cortiços em processo de recuperação.

Com uma população uniformemente muito pobre, é necessário haver uma densidade muito alta para gerar uma exuberância genuína e uma diversidade ampla atraente, como algumas das nossas antigas zonas de cortiços conseguiram por força de uma superlotação fabulosa, somada a uma densidade residencial alta – associadas, é claro, às outras três condições fundamentais que geram diversidade.

O sucesso na recuperação de zonas de cortiço pressupõe o apego de um número suficiente de pessoas aos cortiços em que desejam permanecer e a viabilidade de sua permanência. A inviabilidade é o rochedo em que naufragam muitos cortiços em via de recuperação. Inviabilidade significa falta de dinheiro para melhorias, para novas construções e para empreendimentos comerciais no momento em que essas necessidades se tornam prementes e que seu desencorajamento

  1. fatal. Inviabilidade significa dificuldade de promover mudanças específicas ao longo do tempo em áreas em via de recuperação. Tratarei dessa questão nos próximos dois capítulos.

Fora esses dois desestímulos mais sutis (mas fortes), hoje a recuperação é frequentemente impedida pelo desencorajamento máximo – a destruição.

O próprio fato de uma zona de cortiços ter vencido a superlotação faz dela um lugar extremamente tentador para uma desocupação total ou parcial com vistas à “revitalização” urbana. O problema de transferir os moradores parece muito simples comparado ao dos cortiços permanentes que apresentam terrível superlotação. A relativa saúde social do local também provoca a tentação de desocupá-lo para a entrada de uma população de renda mais alta. Torna-se um lugar apropriado para “atrair de novo a classe média”. Ao contrário de uma zona de cortiços permanentes, passa a ser um lugar “propício para a reurbanização”, como se alguma misteriosa virtude da civilização residisse nesse mesmo local e fosse transmitida. Ao descrever a destruição do movimentado e estável West End de Boston, de baixa renda, Gans fez uma observação que também se aplica a outras grandes cidades envolvidas com a reurbanização: “Ao mesmo tempo, outras áreas que têm moradias mais velhas, mais deterioradas e até mais perigosas têm menor prioridade na revitalização, pela falta de interesse de potenciais empreiteiros e outros grupos poderosos.”

Nada na formação de urbanistas, arquitetos ou autoridades do governo contradiz essa tentação de destruir cortiços em via de recuperação. Ao contrário, tudo o que faz dessas pessoas especialistas reforça a tentação – porque uma zona de cortiços que tem tido sucesso na recuperação possui, inevitavelmente, características de planta, uso, ocupação do solo, composição e atividades que são diametralmente opostas aos ideais da Cidade-Jardim Radieuse. Fosse de outra forma, ela nunca teria sido capaz de se degradar.

Uma zona de cortiços em processo de recuperação é peculiarmente vulnerável em outro aspecto. Ninguém está fazendo fortuna com isso. As duas maiores fontes de lucro nas cidades são, por um lado, os cortiços permanentes, fracassados, e por outro, as áreas de custo alto e alta rentabilidade. Uma zona de cortiços em recuperação não rende mais tanto quanto já pode ter rendido aos usurários proprietários, que se dão melhor com os recém-chegados, nem é mais um campo tão fértil ou atraente para a politicagem, as drogas, o vício e os grupos de proteção como são os cortiços permanentes. Por outro lado, uma área dessas não proporciona nem a valorização da terra nem a alta de preços típicas da autodestruição da diversidade. Apenas proporciona um local de vida decente e movimentado às pessoas, cujas condições financeiras são na maior parte dos casos modestas, e um meio de vida despretensioso aos proprietários de muitas pequenas empresas.

Assim, as únicas pessoas que se opõem à destruição de uma área de cortiços em recuperação – principalmente se ele ainda não começou a atrair novos moradores com recursos – são aquelas que têm negócios ou moram lá. Quando elas tentam explicar aos pouco compreensivos especialistas que o lugar é bom e está melhorando, ninguém lhes dá atenção. Em todas as cidades, essas afirmações são vistas como um brado de pessoas de visão estreita, que impedem o progresso e uma receita fiscal mais elevada.

O processo de recuperação de áreas de cortiços depende do fato de a economia metropolitana, se estiver funcionando bem, transformar constantemente um bom número de pessoas pobres em pessoas de classe média, muitos analfabetos em pessoas qualificadas (ou até bem instruídas), muitos principiantes em cidadãos ativos.

Em Boston, várias pessoas de fora do distrito de North End definiram para mim sua melhora como uma coisa fora do comum, peculiar, baseadas na circunstância de que “os moradores do North End são sicilianos”. Quando eu era pequena, as pessoas vindas da Sicília e seus descendentes moravam em cortiços, assim se dizia, por serem sicilianos. A recuperação e a diversificação dentro do North End não têm nada a ver com a Sicília. Devem-se ao vigor da economia metropolitana e às opções e oportunidades (algumas boas, outras ruins) que uma economia forte produz.

Essa força e seus efeitos – tão distintos da inesquecível vida rural – são de tal forma patentes e corriqueiros nas grandes cidades, que é curioso que nosso planejamento urbano não os assimile como uma realidade importante e digna de nota. É curioso que o planejamento urbano não tenha consideração pela diversificação espontânea das populações urbanas nem tente criar condições para ela. É curioso que os planejadores urbanos pareçam não reconhecer essa força da diversificação nem sejam atraídos pelas questões estéticas de sua expressão.

Essas omissões intelectuais estranhas remontam, penso eu, ao absurdo da Cidade-Jardim, da mesma forma que muitos dos pressupostos velados do planejamento urbano e do urbanismo. A visão que Ebenezer Howard teve da Cidade-Jardim nos soa quase feudal. Ele parecia pensar que os integrantes da classe operária industrial permaneceriam docilmente em sua classe e até no mesmo trabalho dentro de sua classe; que os trabalhadores agrícolas permaneceriam na agricultura; que os negociantes (o inimigo) mal existiriam como força significativa em sua Utopia; e que os urbanistas poderiam tocar seu ótimo e sublime trabalho sem serem atrapalhados pelas contestações grosseiras dos leigos.

Foi a própria fluência da sociedade metropolitana e industrial do século XIX, com sua profunda alternância de poder, pessoas e dinheiro, que mexeu com Howard tão intimamente – e com seus seguidores mais fiéis (como os Descentralizadores Norte-Americanos e os Planejadores Regionais). Howard pretendia cristalizar o poder, as pessoas e os usos e os aumentos de recursos financeiros segundo um modelo estático, facilmente controlável. Na verdade, ele propunha um modelo que já era obsoleto. “A contenção do êxodo rural é um dos principais problemas de hoje”, disse ele. “O trabalhador talvez possa retornar à terra, mas como as indústrias do país poderão retornar à Inglaterra rural?”

O objetivo de Howard era suplantar os novos comerciantes da cidade e outros empreendedores, que o deixavam desnorteado e não paravam de surgir do nada. O que fazer para não lhes dar a oportunidade de desenvolver seus negócios, a não ser sob as diretrizes rígidas de um plano empresarial monopolista – essa era uma das principais preocupações de Howard ao arquitetar suas Cidades-Jardins. Ele temia e rejeitava a união das forças vivas inerentes à urbanização com a industrialização. Não lhes dava espaço na luta contra a vida em cortiços.

A reinstauração de uma sociedade estática, governada, em tudo que fosse importante, por uma nova aristocracia de especialistas em planejamento urbano altruístas, pode parecer uma visão distante da desocupação, da remoção e do emparedamento de zonas de cortiços dos Estados Unidos modernos. Mas o planejamento derivado daquelas metas semifeudais nunca foi reavaliado. Foi empregado em cidades reais do século XX. E essa é uma das razões por que, quando os cortiços de cidades norte-americanas se recuperam, eles o fazem a despeito do urbanismo e contrariando os ideais do planejamento urbano.

Em nome de sua coerência interna, o urbanismo convencional incorpora a fantasia da presença perturbadora de pessoas em “cortiços” cuja faixa de renda não condiz com a renda de moradores de cortiços. Essas pessoas são definidas como vítimas da inércia, que precisam de um empurrão. (Os comentários das pessoas que vêm a saber dessa afirmação a respeito de si mesmas são impublicáveis.) A erradicação, muito embora elas a condenem, é um bem para elas, segundo aquela fantasia, por forçá-las a melhorar. Melhorar significa encontrar seu pelotão de pessoas rotuladas financeiramente e marchar junto com ele.

Assim, a recuperação e sua inseparável diversificação – talvez as maiores forças regeneradoras próprias da economia vigorosa de metrópoles norte-americanas – parecem representar, à luz baça do urbanismo convencional e da sabedoria da reurbanização, mera desordem social e confusão econômica, e são tratadas dessa maneira.

1. Neste ano de 1961, o município está na verdade tentando obter outra vez verbas de órgãos e do governo federal para se “revitalizar” com pseudossubúrbios vazios. É claro que o bairro tem lutado contra isso com perseverança.

2. Nas duas áreas censitárias do Greenwich Village que eram sempre de classe média ou de renda alta, sem nunca terem sido zona de cortiços, a população não decresceu nesses mesmos anos porque não havia índice algum de superlotação a ser reduzido. Caracteristicamente, nessas áreas censitárias, a população aumentou, em certos casos enormemente, devido ao aumento do número dos próprios domicílios – na maioria, prédios de apartamentos. Nesses setores, no entanto, a população infantil, sempre baixa, não aumentou proporcionalmente.